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terça-feira, 10 de março de 2020

Viagem Romântica 15

     Estamos subindo outra vez, degrau em degrau com extremo cuidado. Nos minutos seguintes só pensamentos para ambos. Os degraus de madeira e os dois corrimãos estão apodrecidos e esfarelando em algumas partes. As flores brancas parecendo algodão cru que vimos na subida se perdem em meio à escuridão. Nada aqui é o mesmo de antes. Toda matéria viva parece que foi lentamente destruída desde a nossa subida. Não sei quanto tempo já se passou. Talvez horas, dias, semanas, meses, anos ou décadas. O ambiente continua esquecido e mantém um tipo de clima constante e incansavelmente triste, mesmo sem que possamos enxergar qualquer coisa um palmo diante do nariz, mas eu sinto que aqui o tempo corre sem marcação alguma. A cada novo degrau descubro coisas novas nos trajetos que parecem inusitados. O único amor que possuo nesse momento é o amor que surgiu de repente dentro de mim por esse lugar. Tento mudar de pensamento, mas não adianta. Estou preso aqui, esse lugar tem uma enorme capacidade de emitir sinais que são captados por uma intuição infinita, uma intuição indecifrável até agora. Nesse passeio noturno percebo que estamos sendo seguidos. Sinto que meus pensamentos são proibidos e censurados a cada minuto por essa força estranha, ou até alguns segundos depois de nascerem. Tudo acontece clandestinamente, é claro! Mas aqueles que tentam me censurar sabem que é inútil tentar violar os meus pensamentos, porque só eu sei que eles são feitos de imagens loucas. As ideias se confundem e as palavras dentro de mim se misturam. Os tons podem ser leves e suaves, mas a mão desse pintor é pesada e rude, porém, num estilo figurativo abstrato e sútil. Assim tudo vai mudando, revezando de lugar e de sentido nessa subida em busca de uma saída. Estamos numa situação, sendo pessoas que se parecem com a realidade, mas ao mesmo tempo noto que nada faz parte desse mundo real que é conhecido como mundo físico. Sei que nossas conversas poderiam ser mais belas, tranquilas e sem cargas emocionais tão densas; pena que não seja possível. Nessa troca de conhecimentos tudo é sentido de uma forma intensa e cruelmente triste para ambos - e mesmo que existam muitas controvérsias e mistérios nos planos de cada um, a única coisa que resta é subir. Assim o tempo correrá no seu ritmo certo e sem atropelos. Nada disso foi aceito ou programado como uma disputa, cobrança ou vingança, é sim uma deliberação de um conselho bom. O que pode até parecer uma forma simples demais para justificar certas imagens que tive em sonho, todavia, é a única forma que eu tenho para agir. Continuo subindo e usando como base os fatos que possuo para que finalmente encontre a resposta, mesmo que, um dia na vida, tenha fracassado inúmeras vezes nas coisas que buscava, eu persisto. Mas, alguns fracassos talvez sejam comuns aos obstinados como eu - depois de um tempo passei a acreditar fortemente nisso. 
     Bem... Já que ela não deseja conversar comigo no momento da nova subida, e apenas tenta em silêncio chegar até o local aonde começa a trilha para a saída, eu poderia até justificar, com centenas de descrições e exemplos do mundo humano, porque penso tantas coisas que alguns consideram esquisitas. Reconheço que sempre fui um tanto inconsequente no passado, bastaria ter um pingo de dúvida sobre qualquer coisa para jogar tudo por terra abaixo. Um dia parei para pensar e passei a agir de um modo que toda certeza só poderia vir de uma grande soma de dúvidas. Eu sempre odiei limitações e estreiteza de pensamentos, nunca admiti que eu seria estreito e limitado, mas aprendi a disfarçar bem. Então, sendo assim, nunca desistia porque achava que poderia tentar outra vez e outra vez e assim por diante, sem nada para determinar rumo ou objetivo, e sempre acreditando ser protegido e invulnerável. Eu não percebia o quanto era frágil tudo aquilo que me rodeava. E quando o tempo passou e eu caí em mim, eu não disse uma só palavra de condenação por minha escolha, apenas pensava em como eu era ingênuo e romântico. O mundo dos homens e das mulheres passou a ser visto por mim como uma peculiar união de sombras e sonhos, que vinham acompanhados de tristeza e ansiedade. Era a minha ansiedade faminta e loucamente desesperada para que um milagre acontecesse. Eu vi muitos outros como eu, eles iam vomitando suas sementes de angústia pelo caminho por onde passavam, buscavam  conselhos e um ombro amigo, todos estavam acorrentados pelos fatos controversos que trouxeram frustração por tudo que um dia viveram. É justamente nessa parte que penso mais fortemente em tudo o que Karla já me contou e nas imagens que sonhei da sua casa em cacos após as chamas. Fico imaginando o que ela teve a coragem de sacrificar em seu passado. Parece que, quando a sua casa fosse reconstruída e seu mundo novamente caísse aos pedaços com as descobertas, esse fantasma que vem lá daquele tempo ainda a faria ofegante com seus lindos olhos brilhantes e toda a euforia de tremer o chão. Uma coisa eu penso: O que teria acontecido entre nós que não me lembro? Talvez nada - ou, pelo menos no que se refere a mim, seria algo que nos balançou tanto que acabou levando nossas vidas para outro plano - para um lugar onde eu não sei como estamos ou se ainda permanecemos vivos. O meu fluxo emocional passa por uma transformação. Eu vivo, não como era antes de conhecê-la, hoje eu vivo por mim, porque tenho uma pensamento e uma obrigação, é o pensamento que me torna vivo. Mas nessa vida não existem mais as saudações de chegada ou de adeus, sequer comemoração de datas especiais, existe apenas o tempo sem controle feito pela obrigação. Por isso, quer ela goste de mim ou não, - apesar de que eu creio que ela me odeia profundamente por repetirmos até a exaustão os mesmos passos -  ela ainda não percebeu que me trouxe até aqui por um motivo que só eu entendo, - mas isso é bom para que sinta que ainda está muito próxima de mim. Ela vive em meus pensamentos e em meus sonhos porque eu sei que não morri. Eu não morri, e o meu viver é algo muito mais intenso do que estar simplesmente morto. Talvez seja essa a razão porque ainda tenho tanto medo das revelações do passado, se é que existiu um passado entre nós. Ela sabe que me pregou uma grande peça quando fez os meus fluxos emocionais se inverterem. Com toda certeza lembrará muito bem que tenho uma linguagem toda própria de me fazer entender, por isso estamos aqui nessa viagem que deveria ser romântica. Ela me trouxe até aqui pensando que sabia o que fazia, com atitudes perfeitamente elaboradas perante o mundo e diante de Deus. Quando estou sozinho em meus pensamentos, porque agora sozinho subindo as escadas com ela à frente, eu penso nela, eu converso com ela, eu sonho com ela. Tudo de uma forma singela e ingênua. É a primeira vez nessa vida que acho que o incerto pode ser algo fascinante. Pensando assim, tudo faz sentido e eu me sinto melhor por estar vivo ao lado dela. No entanto, se algo se passou em outro tempo, tudo parece envolto numa espécie de agonia e sofrimento, mas não agora, não mais. Agora são somente sonhos do meu jeito, com ela adiante desbravando a escuridão. Quando eu sinto que ela está se distanciando eu toco nela para que diminua o passo, mas eu sinto que acabo ficando mais próximo do que poderia estar, uma proximidade perigosa. E quando eu a olho sumindo na névoa da noite e a toco devagar, apertando aos poucos a ponta do dedo em sua pele -  eu gostaria apenas de chamar a sua atenção e ganhar um olhar carinhoso de canto de olho. Seria bom se fosse sempre assim! Imagino que a ideia que faz de mim seja de um chato com pensamentos impuros e nada ingênuos, tentando decifrar tudo o que está acontecendo, ou não acontecendo nessa situação. Eu penso nela porque aqui ela é a única vida que eu tenho, isso até o fim do caminho. Se ela pudesse olhar para trás notaria nitidamente que tudo que vem acontecendo é apenas por que ficou presa em mim como algo essencial. Seja como for, só existe um caminho, são como planos traçados e determinados. Nós somos parte dele. Nós teremos que nos submeter por um bem maior. Essa tem sido a mensagem que aparece frequentemente em meus sonhos que trazem o passado de volta. Mas não, nenhuma palavra, nenhum gesto, nenhum sinal, ela só pensa em subir, vai por cima dos degraus, das pedras... O único meio de contato que nos liga é essa linguagem esquisita, que nada mais é do que uma  mensagem do campo de batalha; pensamentos venenosos anunciando que algo irá acontecer. Eu sei, novamente e positivamente, que ela me odeia. Mas, novamente suspeito que ela tenha emoções contraditórias, que ao mesmo tempo não sente arrependimento por tudo o que provocou, sabe o quanto é duro viver longe do único lar que conheceu. Talvez tudo tivesse corrido satisfatoriamente bem se ela se permitisse levar tantos desaforos sem chorar. Devo reconhecer: ela tinha uma genuína afeição pelo respeito que tentou construir durante a vida - e que perdeu por se sentir injustiçada. Mas, parece que isso foi há muito tempo, quando ela era só uma pessoa comum. Eu não gostaria de ver seu rosto triste diante dos acontecimentos trágicos. Naturalmente que eu preferiria o seu semblante alegre, entusiasmado, sereno e otimista, e com a ordem das coisas mudadas. Eu jamais chegaria a dizer isso a ela, naturalmente, mas, com certeza, viveria torcendo pelos cantos para que tivesse paz de espírito e mente tranquila. Eu nunca iria querer uma guerra entre nós, uma guerra que eu imagino seria dura e com um final significativamente triste. Todo esse pensar me perturba um pouco, pois nada me satisfaria mais se as coisas tivessem sido diferentes de tudo que acabei de constatar. Agora o que me resta é subir, encontrar o caminho que poderá me levar até algum aconchego. O céu da noite fica mais adorável do que o próprio passeio quando penso sem tantas tristezas. E o meu alívio é que ela nada ouviu. Agora os meus pensamentos são bons, são tão generosos que até faria questão de ficar lado a lado com ela na subida, entraria no assunto de tomarmos uma taça de vinho importado daquela garrafa que ainda não abrimos, e saborearmos queijo quente no espeto ou fondue com pão italiano. Nesse ritmo eu a deixaria me levar por lugares onde já estivemos e outros que nunca pensamos em ir. Pensaríamos num futuro bem diferente, por mais modesto que ele pudesse ser. Talvez um dia, antes de irmos embora de vez desse lugar, eu imagine tudo de novo e com mais detalhes. O mais estranho é que passear assim, lado a lado numa escadaria escura com ela, e por outros ambientes em que estivemos, me deixa muito mal-acostumado.
      Volto no tempo e relembro o primeiro dia, naquele dia eu não sabia que aos poucos iria conquistando a sua confiança e abriria caminho para salvar o seu coração que futuramente seria lançado no mesmo abismo que lançaram Satã. Devagar nós iríamos ficando mais conhecidos um do outro, mais íntimos e agradados por um tipo de senso comum de aventura - tentando a filtragem dos pensamentos impuros para alcançar a glória. Eu gostava das suas maneiras que pareciam de sabedoria e mistério, mas que sempre tinham uma pontinha de dor no final. Tudo bem... Ainda assim, ela era a pessoa que me atraiu.  Pena que eu não soubesse que suas ideias seriam tão diabolicamente inteligentes depois. Nem quero voltar a recordar aquela coisa chata que aconteceu, nem lembro dos detalhes, ainda assim consigo sentir uma espécie de música melodiosa saudando a sua imagem entrando no meu pensamento. Lembro-me do aroma das flores daquele banco de parque no pico do Jaraguá em que demos abraços e beijos sinceros; tivemos uma estátua do cristo de braços abertos como testemunha. Lá de cima tudo parecia bem mais fresco e os montes distantes eram de se perder de vista no horizonte. Nenhum outro homem poderia compreender o meu encanto pela natureza, até sentir o quanto tudo é marcante ao estar ao lado de alguém por quem se apaixonou. Naquele dia havia em seus lábios um tipo de sorriso inexplicável e jovial. Era um instante que se destinava a transmitir tantas coisas, que palavras não conseguiam definir de forma absoluta o querer de ambos. Pois é... Agora estou aqui me agarrando novamente naquele sorriso inexplicável, tudo para ficar ciente de quanta ingenuidade existe nesse meu pensar. Toda vez que isso acontece abre-se uma fenda, como se fosse um túnel do tempo com ventos em rodamoinho. As imagens vão se misturando, escurecendo e clareando. Parece que o mundo deixa de girar por um instante e tudo fica estático e morto. É quando vejo de novo que estamos num labirinto. Dentro desses caminhos truncados ainda ouço gritos selvagens que surgem ecoando do passado, são nossos corpos brilhando no escuro como palitos de fósforos riscados na escuridão. Uma cena incontrolável com uma aura sedutora num ninho de amor apoiado em brasas. Passo a passo agora vejo em minha mente o lugar onde poderíamos morrer sufocados pelo calor, ou pelo silêncio pleno dos momentos de fluxos constantes, com movimentos que levariam para dentro e para fora o desejo intenso de pertencer um ao outro. Esses movimentos iam num crescendo, evoluindo e trazendo para próximo aquilo que já estava distante em nossos desejos. A sensação era como virar de dentro para fora e de fora para dentro ao mesmo tempo. Depois disso Karla saberia que nunca encontraria outra vez essa mesma emoção. Nem mesmo aquela sensação ao dar uma volta por caminhos perigosos, que levam para uma trilha na beira do abismo que pode, num escorregão, alguém terminar numa queda nas águas do riacho no fundo do vale. Nesse milésimo de segundo desejo que esse mundo de homens e mulheres que sonho não fale mais comigo assim, não posso ser tão sentimental. Eu quero ser humano agora. O meu mundo transbordou de uma fronteira para outra porque a minha vivência sempre foi como uma falsificação de intenções. Eu sempre senti como se a minha vida estivesse pertencendo à vida de outro alguém, e, às vezes, com um sentimento de ausência de vida, a situação sempre pareceu alimentada por um destino amargo e sedutor. Mas, seja como for, eu nunca soube de nada, estava apenas flertando com o desastre que viria sem controle. Eu me lembro de pequenos fragmentos, que numa noite tudo estava acabado de forma trágica, eu já não tinha mais forças para resistir a outro elo que a corrente poderia criar entre nós. Então fui lançado como uma bala para fora do mundo que conhecemos. 
Agora subo a escadaria com Karla, porque tudo morreu. A cabeça está inclinada, a boca completamente aberta e o corpo seco. Ninguém mais me ouve ou sente o meu calor. A única coisa que eu queria era ir embora daqui, isso em definitivo, porque sinto que eu também estou caindo aos pedaços, mas tenho algo importante a fazer. Caminharei para fora, de uma rua a outra, e para seguinte até o dia surgir com seus primeiro raios, então, sentarei em qualquer lugar e esperarei a aurora dos tempos, com certeza, alguém passará por mim e será seduzido por um sorriso franco e audacioso. Andarei novamente ao redor das pessoas, circularei por todos os cantos,subirei e descerei escadas, tentarei esperar até que o último traço de escuridão surja e novamente comece a desaparecer. Sou mesmo um estúpido. Penso que tenho agilidade para correr e me esconder por ser magro e comprido, mas existem posições nas quais não consigo equilíbrio, posições imaginárias. Será que ela não consegue entender que estou bem aqui atrás dela, e que preciso sair? Tenho a todo custo que ir embora, mas preciso que ela se redima, que suba e desça essa escadaria 100 mil vezes por mil anos, preciso ir, mesmo que seja essa a única missão salvadora que ainda me faz vivo. Quem nunca teve medo? Será que ela acha que eu também sou um poço sem fundo de ódio e frustração? Sei muito bem que ela é indiferente a tudo isso e nem sabe o que faz aqui, nem imagina que recebeu a indicação desse lugar por um tipo de sugestão telepática. A verdade é que no mundo dos vivos ninguém liga para ninguém e não importa quem chegará vivo ou morto no final da viagem. Quando os últimos raios do dia penderem no horizonte em tons vermelho e amarelo, a lembrança do que passou acabará e só restará o sonho. Nada se alterará diante do que era, a não ser dentro de mim por mais uma etapa da missão de ambos cumprida. De tal modo que, uma sensação me invade quando vejo o mundo todo subindo. É como se estivesse em transe e meus gestos e minhas ações fossem sempre se repetindo na mesma ordem. Somente um louco ou um morto por amor seria capaz disso. Então me aperto todo, tremo de cima embaixo porque não consigo deixar de pensar. Malditos são os pensamentos e as obrigações que me consomem! O semblante de Karla parece nunca envelhecer enquanto sobe e quando desce, é dessa imagem fixa que me lembro. Essas imagens atrapalham um pouco os meus pensamentos, quando fico com uma excitação interior acumulada por tantas cenas adoráveis que poderiam ter permanecido para sempre em nossas vidas. A estrela da manhã lá em cima trará o mesmo brilho que um dia nos iluminou rolando pela grama molhada, era um abraço carinhoso e protetor que deveria durar para sempre. E eu ali vivo, estagnado por tanto transbordamento de sensações insondáveis. Por quê os pensamentos sempre voltam? Por quê não fazem como os outros que nem me lembro? Fico imaginando quais os planos que ela esconde agora em seu rosto calado, ou na boca retorcida, pronta para me agredir por tantos passos a subir ou descer. Sei que agora são outros tempos, ela não explode mais como antes. É praticamente incapaz de soltar um gemido. Apenas observa e elabora planos. Sempre manterá a mesma sensação, a de que está vivendo duas vidas separadas. Uma vida é da reunião de família para o jantar, a outra é diante do corredor escuro com pilhas de escombros, espreitando todos infortúnios da vida que provocou quando botou fogo na casa durante uma madrugada, enquanto todos dormiam. Então, agora percebe que as pessoas a olham como se fosse invisível. Isso acontece até mesmo no simples ato de tentar compreender as coisas inexplicáveis, até de como se matou. Então é obrigada a rastejar, implorar, retirar os muros para achar a equação adequada da fórmula de sobrevivência através da penitência. Quando penso em Karla assim, juro que não sei o que faço e nem por que estou fazendo tais coisas. Talvez eu esteja nisso por achar que o mundo precisa de paz. O meu mundo precisa de paz. No entanto, não entendo, e que Deus me perdoe, não entendo nada e nem por que fui escolhido no meio de tantos. Não é justo um cara como eu, vagando assim no frio e no sereno da noite de qualquer época para subir e descer até o fim dos tempos. Alguém sabe que já morri? Tem alguém ouvindo as minhas perguntas? Por quê toda manhã eu tenho que ouvir a mesma música, atender o telefone e partir para estrada em busca do mesmo destino? É... Isso é uma coisa que eu nem sei ao certo quando vai acabar. Tudo dependerá do meu perdão por ter matado meus pais a tiros no meio da rua, porque eu odiava eles, foi na mesma noite em que Karla botou fogo na casa. Eu corri, fugi para o centro da cidade. Eu era uma besta fera pronta a fazer pior quando me atirei do alto do viaduto do chá em direção à morte certa em cima da capota de uma caminhonete que passava. Como explicaria a alguém o comportamento que tive? Diria que fui ofendido e afrontado pelos meus pais? Que eles me abandonaram na infância nas mãos de gente psicopata enquanto faziam seus passeios pelo interior do Brasil? Ou instalaria uma dúvida permanente que flutuaria entre sanidade, demência e perversidade gratuita? Isso me dava tanto medo que preferi brincar com a morte. Rasguei em tom solene todas as regras compreensíveis de normalidade, fui rindo como quem risse da própria tragédia. Do riso fui ao choro e o tempo de repor as energias acabou, passou rápido demais, foi um dia e uma noite em um segundo. Os portões da entrada principal do meu quintal ainda estão fechados com corrente e cadeado enferrujados, os degraus sem fim praticamente brilham no escuro. Não existe acesso lateral, nem novos visitantes ou vista maravilhosa com imagens lúdicas. É tudo imaginação.  Existe um cortejo onde olhos espantados nos seguem, alguns se assustam, lamentam e choram em silêncio. Uma senhora aborrecida desce e passa, usa vestido preto e vermelho com um laço branco na cintura, olha mais demoradamente nos olhos de Karla e vai; outra, mais jovem, vindo atrás, vestida num longo vestido azul esvoaçante, agita-se e foge dela para fora da escada e se perde na escuridão. A cada nova observação que eu faço outra pessoa surge, agora é um homem de terno e gravata, passa por nós e nem olha para ela. Mas Karla não vê nada, não vê o que eu vejo, talvez ela veja o que eu não consigo ver e não fale nada. E assim seguimos na mesma escalada dos degraus, até o infinito, até o dia do juízo final.    


                            

Cansado e Velho

Minha história gira em torno de mim mesmo, — uma vida quase nas portas do delírio na mente de muitos —, com o intuito único de conti...