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terça-feira, 28 de agosto de 2018

O Pecado Capital Parte 09

                                           Episódio 9 (Remorso)  

     Certa vez vi uma citação que dizia algo assim: “Há um mundo de luz, no qual tudo é claro e manifesto, e há um mundo de confusão, onde tudo é sombrio e obscuro”. 
    Em muitos aspectos minha vida se assemelha a isso, porque descobri que esses dois mundos são verdadeiramente um só. 
    Por minha única escolha insisto nesse mundo e corro atrás. 
    Não sei e nem entendo por qual motivo, deu vontade de ligar para minha irmã, apesar da certeza que ela não atenderá. 
    Queria muito fazer uma surpresa numa grande demonstração de carinho com palavras dóceis e sorrisos - mesmo sendo via telefone celular ou whatsapp - reconhecendo que ela nunca teve qualquer senso de humor e muito menos imaginação para retribuir um agrado meu nos últimos anos que moramos juntas. Mas que deu vontade, isso deu mesmo!

     É engraçado como ela constantemente se mostrava tomada pelos conhecimentos que carregava desde os tempos da faculdade, e vivia orgulhosamente se mantendo numa visão fechada e com toda a atenção voltada para um ponto qualquer no vazio. Ela balançava a cabeça quando concordava com alguma coisa e olhava fixamente para o alto quando tinha dúvida; mas nunca diretamente nos olhos do interlocutor. Às vezes, quando parávamos para conversar, eu tinha a impressão que ela me considerava uma completa ignorante, como sendo alguém muito inferior aos seus conhecimentos, já que não tive o mesmo apoio dos nossos pais para o estudo. Primeiro: por eu ser 7 anos mais nova, e segundo: por estarem praticamente quebrados financeiramente no último ano de faculdade dela. 

Reconheço que eu demonstrava certo embaraço e um pouquinho de inveja quando ela começava a expor as virtudes de seus conhecimentos na formação em biomedicina. 
     Ela modulava o tom de voz de um segundo para outro até elencar todas as evoluções que obteve na carreira no decorrer dos anos e no seu cargo de chefia no laboratório de microbiologia. O que mais me irritava que ela fazia questão de viver ressaltando que nossa família era de prodigiosos pesquisadores do começo do século 20, imigrantes europeus, um tipo de gente extremamente diferenciada e evoluída culturalmente. Ela se orgulhava disso! 
     De tempos em tempos repita a história para quem quisesse ouvir, que nossos consanguíneos trabalhavam para o governo italiano e teriam feito descobertas extraordinárias em favor do avanço cientifico e tecnológico desde 1910 até 1930 e também várias inovações no campo da ciência relacionado com radiologia, mas tiveram que fugir da Itália rumo ao Brasil antes de estourar a segunda guerra mundial. Com Benito Mussolini ampliando severamente a perseguição aos lideres de sindicatos e intelectuais que não concordavam com o regime fascista seria suicídio continuar por lá. Dizia ela com orgulho e nariz empinado. Ressaltava ao final que nosso tio-avô virou nome de uma pequena rua no bairro da casa verde.

    Naquele tempo eu queria tanto que ela fosse capaz de parar de falar de si mesma e dos nossos antepassados por um instante, que falasse de nós, somente de nós duas. Afinal de contas ela já estava perto de completar 30 e eu já com 23, e eu na defensiva, sem um diploma de faculdade. Mas ela tinha um jogo de cintura surpreendente e mesmo que eu soubesse do jeito dela de se gabar jamais senti antipatia. 
     De um modo como nunca consegui explicar, eu entendia o tipo de amor meio distante que ela tinha pela união da família, e por ter personalidade forte raramente expunha suas verdadeiras opiniões para evitar conflitos. Ela tinha o tino de agir na hora e na medida exata da nossa necessidade, passando a segurança de que se algo errado acontecesse em nosso lar, com nosso pai ou nossa mãe, era ao lado dela que eu iria ficar. Eu tinha, desde muito pequena, a verdadeira sensação que ela nunca me abandonaria. 

     Quando fico assim lembrando volto mais no tempo, lá pelos meus 12 ou 13 anos, quando eu ainda estava envolvida numa sensação de algo lúdico e poético com a vida, ficava de canto admirando a teimosia que ela tinha de estudar para ser alguém na vida, tarde da noite cochilando em cima da escrivaninha, quase caindo da cadeira e vivendo dia e noite debruçada sobre os livros, o que fazia manter olheiras enormes e a espinha meio curvada. Eu achava graça daquele esforço. Eu me sentia moderna demais para me associar a um tipo de comportamento de isolamento que abrisse mão da diversão ou da liberdade de adolescente. Ao perceber isso, meu pai chamou minha atenção, disse que eu viveria para sempre uma vida de fracassos, caso continuasse agindo assim e sendo tão desinteressada e desleixada com os estudos. Portanto, a mensagem que ficou para mim, desde aqueles tempos, foi a de que eu passaria a vida inteira sofrendo questionamentos, desafios e afrontas da família até que encontrasse meu próprio rumo.
    
     Assim fui crescendo embalada pelos simbolismos e significados dessa poderosa realidade e da segurança que meu pai e ela transmitiam. 
    Ela suspirava quietude e determinação, pois era a pessoa da casa que tinha o maior salário - isso alguns anos depois que meu pai, desempregado, aceitou um emprego pior, bem abaixo da sua qualificação, porque já havia torrado todas as economias , por dois anos e meio ou mais, no qual vivia de fazer bicos. 
     Creio que tudo isso é que motivou a minha natureza insegura, inconstante e alucinada. Uma natureza que passou por dois mundos distintos.

     Sinto uma reação psíquica estranha quando as lembranças ficam mais fortes; logo vem um sentimento que se perde num turbilhão de mensagens subliminares que ela me envia em pensamento para que eu tenha essa vontade de comunicação. Ela sempre soube que nunca tive nada grandioso para contar e que esse meu desânimo tem significação, já que não sei se me sinto imatura ou senil diante das circunstâncias que envolvem a mim e ao Gustavo nesse quarto de hotel. 
    Eu me vejo aqui agora praticamente do mesmo jeito quando estava em pé no quarto da gente, e penso o quanto tive de sorte por ter passado todos os meus melhores anos dormindo ao lado dela. Ela me ouviu roncar ou acordando gritando de um pesadelo no meio da madrugada. Ela me acalmava e sorria enquanto eu virava para o outro canto. Ela conhecia meus defeitos e meus temores e sabia que sem ela eu não dormia bem. Sem ela, eu me mexia e me revirava na cama ficando com os olhos arregalados a maior parte da noite observando as sombras dançando no teto. 
    Hoje tudo isso faz muito sentido para mim. 
   
     Quando lembro do rosto dela, um rosto que talvez eu conhecesse melhor que o meu próprio, eu sei que para ela, eu era igualmente ou até mais importante. E isso significa mais para mim do que eu seria capaz de explicar a qualquer pessoa que perguntasse sobre ela. 
     Em breve esses momentos que vivo aqui ao lado do Gustavo vão passar. Eu sei disso. Ela não. Ela continuará com suas regras e eu com as minhas. 
     Quando tive minha primeira desilusão amorosa ela estava ao meu lado e trouxe um livro de Carlos Drummond de Andrade que continha uma marcação numa página. Ela, imaginando que eu fosse gostar, pediu que eu abrisse e lesse em voz alta o poema que ali estava e que dizia:
   
O amor antigo vive de si mesmo, 
Não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
Mas do destino vão nega a sentença.
O amor antigo tem raízes fundas,
Feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
E por estas suplanta a natureza.
Se em toda parte o tempo desmorona
Aquilo que foi grande e deslumbrante,
O antigo amor, porém, nunca fenece
E a cada dia surge mais amante.
Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
E resplandece no seu canto obscuro,
Tanto mais velho quanto mais amor.

     Eu chorei. Não foram apenas os versos que me deixaram emocionada, era tudo junto. Eu nem tentava entender, não queria, porque o poema não tinha sido escrito para ser entendido. Ele estava ali apenas para me inspirar e me fazer crer em algo maior. Talvez no todo, na união que é a soma das partes. 
     Fui em direção a ela e me sentei na cadeira ao lado da cama. Segurei a mão dela que era macia, frágil e comprida. A sensação era boa. Ela reagiu se contraindo um pouco e deixou o polegar afagando suavemente minha mão. Ficamos ali sentadas em silêncio até que meu mundo começou a rodar em círculos, e eu senti o braço dela apertando com força o meu. Em seguida vieram inspirações e expirações, ora profundas, ora mais calmas, e houve um momento em que ela sussurrou: "Calma. Vai passar!". 

     A imagem dela se esvaiu como fumaça no ar e volto ao real...

     Eu dou um "stop" e passo meu olhar em Gustavo. Ele dorme como um bebê. Eu sonho mil sonhos com ele, embora sabendo que não devia fazer isso. 
      Eu me abaixo um pouco, estico o braço e toco suavemente seu rosto. Acaricio seus cabelos, e quase perco o ar como na ocasião do poema. 
     Eu sinto um leve espanto misturado com admiração, como uma pianista tocando pela primeira vez o bolero de Ravel. 
     Eu lamento minha loucura porque sei que sou impulsiva e fraca, eu sei sim, mas sinto uma vontade incrível de tentar algo ousado com ele. 
     Eu me inclino mais e aproximo nossos rostos, os meus lábios tocam os dele, sinto um formigamento, mas não recuo. Subitamente acontece um milagre, porque descubro um paraíso oculto, inalterado e praticamente esquecido durante todo esse tempo em que estive refletindo. E quando minha língua entra na boca dele eu me permito deslizar, fecho os olhos e me torno poderosa. Com gestos suaves contorno seu rosto com a pontinha do meu dedo e depois toco a mão dele de relance. 
     Eu não tenho como conter as lágrimas enquanto começo a deslizar novamente para o próprio céu. Eu travo uma batalha comigo mesma, que no final exige que tenha minhas duas mãos livres para mover um peso que parece uma tonelada. 
     Continuo agindo como uma tola, uma mulher apaixonada, uma sonhadora cujo único sonho é reencontrar Léo e abraçá-lo o mais forte possível. 
     Sou uma pecadora com muitas faltas e poucas penitências, sou alguém que acredita em magia, mas já me sinto velha demais para mudar meu jeito e velha ainda para dar a miníma para qualquer coisa.

     O meu coração agora bate de um jeito estranho dentro do peito. Meu corpo está fraco, minhas pernas cambaleiam e meus olhos enxergam tudo embaçado. 
     Praticamente me sinto esquecida para sempre.

    Mãe, pai, minha querida irmã Solange, onde estão vocês agora? 
    O meu olhar novamente se perde no infinito. 
    Sinto-me tão nua e descalça, tanto quanto na hora do meu nascimento. 
    As pedras no caminho ferem a minha carne até sangrar. 
    O meu espírito foi envenenado até a morte. 
    Pai, mãe, Solange, onde estão vocês? 
    Caminho novamente pelo chão do quarto com os braços totalmente largados. O pensamento voa alto, até o infinito. Os olhos buscam uma resposta. Léo, Léo. Por que tem que ser assim? Em algum momento fui falsa com você? Você sabia que estava criando em mim rancores e ressentimentos? Responda-me! 
     Saiba que a minha alma está tão machucada e chora por dentro. 
    Não sei como que você conseguiu tocar tão profundamente o meu coração. Só sei que foi uma sensação boa e inusitada desde o primeiro dia..
     
     Onde foi parar tudo aquilo? Responda!
     Ouço alguém tocando piano. São acordes fortes e impactantes acompanhados de saxofone. As vozes não saem da minha cabeça. Ela dói tanto... Lateja... Léo onde está você? Por que agiu assim comigo? 
     Meu pai queria tanto que eu fosse alguém grande na vida, mas eu queria apenas ser sua e esperei que algo bom acontecesse. 
     Mas foi apenas uma mentira sem fim. 
     Eu nunca soube quando o sofrimento poderia chegar ou o peso que poderia carregar. Nunca imaginei que ele tivesse forma ou conteúdo. 
    Sei muito bem que a vida toda nadei contra a corrente, mas não contava que tantos infortúnios prevalecessem assim. 
    Pensei tanto que meu comportamento pudesse me proteger. Ou que finalmente a fuga da minha vida, do meu lar e da minha família, fosse suficiente para deixar de lado o que ameaçasse a paz. 
    Para onde está me levando a minha fraqueza agora? 
    Estou aprendendo da pior forma que não há lugar escondido no mundo onde coisas ruins não possam me encontrar.

     Minha mãe... Meu pai... Onde foram parar as lições que me ensinaram? Onde foi parar o escudo protetor que me mostraram como carregar? 
     A melodia mudou e martela na minha cabeça até estourar os miolos. 
     Por que alguém toca piano tão alto? 
     Mãe? Por que você sempre tocou tão bem as notas da vida? Como soube mudar de ritmo com tanta leveza? 
     Estou chamando, venha! Você consegue me ouvir? 
     Pai... Pai... Venha até mim e me ensina tudo de novo. 
     Pai... Estou tão perdida. Perdoa o que fiz. Não deixe essa parte de você morrer de dor. Não deixe que algo de ruim me aconteça por arrependimento. 
     Pai... Eu menti, eu sei. 
     Você ainda se lembra dos nossos passeios? Que falta faz o mundo verdadeiro... 
     Pai... Manda o homem parar de tocar piano! Eu não aguento mais. Por favor, pai... 

     Às vezes quando olhava pela janela do quartinho dos fundos, você estava lá, sentando em seu pequeno banco de madeira, engraxando com tanto esmero seus sapatos. E eu, pai? Você parecia tão concentrado, que nem percebia o meu olhar furtivo de admiração, você mantinha uma pose tão cuidadosa e compenetrada que eu acabava invisível... 
     Pare com isso agora! O tempo já passou. 
     Eu queria tanto poder sair com você no domingo depois do almoço. Seria tão bom estar ao seu lado. 
     Pai... Um dia você me deu um abraço tão caloroso e saiu timidamente com um jeito desengonçado e pensativo. 
     Por que pai? Por que? Por que atende a todos os pedidos da Solange e nunca os meus?

     Mãe... Você andava pelo quintal para tomar o sol da tarde. Os seus cabelos ficavam tão lindos com a luz do pôr sol. Lembra aquela vez que voltei para casa, depois de muito tempo viajando pela Bahia com minhas amigas, e você me abraçou tão forte que os ossos estalaram? Sinto como se fosse hoje, foi justamente quando você encostou o seu rosto no meu e me beijou demoradamente. Você me olhava tanto... Abraçava tão apertado que eu me sentia como se tivesse voltado do outro lado do mundo. Aquelas lágrimas que escorreram dos seus olhos me marcaram muito, viu.

     Hoje estou andando pelo deserto porque escolhi assim. Eu tenho que controlar o meu próprio destino, custe o que custar. 
     Por que sofro assim sozinha? Alguém me diga! 
     Por que a minha única companheira é a sombra que me acompanha? 
     Mãe.... Estou aqui... Você ainda se lembra quando eu perguntava por que papai demorava tanto naquelas viagens?  Você nunca me respondeu a verdade, mas eu acreditei em tudo. 
     Mãe...  Eu não queria que fosse assim... Mas eu sei que sempre será. 
     Mãe... Coloque o disco do Elton John na vitrola e toque Skyline Pigeon outra vez. Você sabe que essa é a música que eu mais gosto. Lembra quando você assoviava o refrão sem parar? Meu Deus! O tempo passa tão rápido...

     Gustavo ainda me espera com seu fio de esperança. Talvez esse seja o meu maior desafio. Eu tenho a árdua tarefa de realizar o sonho dele. 
    Uma nova sensação de saudade me domina outra vez. Uma saudade poderosa do Léo. 
    Estou certa que ele pegaria na minha mão e me levaria para cama para momentos maravilhosos e inesquecíveis. E na manhã seguinte traria a bandeja com o café e perguntaria se dormi bem. Ele sempre foi tão gentil e cativante com essas atitudes... 
    Por isso penso agora: "Por quê não fiquei com ele"? Que estranha recordação é essa que me toma assim tão de supetão?

     No entanto, esse tipo de imagem do passado, desperta em mim a certeza que ainda tenho alguém ao meu lado que me ama de verdade. Por isso choro em silêncio e a cabeça continua pesada. 
      Estico o olho na esperança de que Gustavo tenha acordado para conversar comigo. 
    O forro da cortina está meio puxado, nem um sinal de movimento lá fora. O mundo parece totalmente estático. 
     Passo para o outro lado do quarto, no canto está escuro. Fico por uns quinze minutos alheia a tudo que já passei. 
     Tiro um lenço da bolsa e enxugo o rosto, me limpo de toda perversidade que desejei, que dei ou que sofri e lamento que a voz delicada e consoladora do Léo me faça tanta falta nesses momentos.











Cansado e Velho

Minha história gira em torno de mim mesmo, — uma vida quase nas portas do delírio na mente de muitos —, com o intuito único de conti...