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quinta-feira, 18 de junho de 2020

Dear Miss C Capítulo 14

     São dez da manhã de uma segunda-feira, acordei encharcado de suor e uma dor de cabeça terrível. Ufa... Como faz calor nessa época do ano em São Paulo! Ruth bate à porta e já vai entrando - talvez fosse melhor ter batido e esperado um pouco, já que a cena não foi das melhores para os seus olhos cansados de sessenta e poucos anos.

- Ai caramba viu! Pelado? Pode vestir uma roupa adequada? O senhor tem visitas!
- Quem é?
- É a sua mãe e um outro rapaz... Ela trouxe os papéis.
- Vou me vestir e já vou.
     Ela parecia a ponto de espumar de raiva por eu estar aqui e ela, como boa enfermeira, novamente presenciando a mesma cena diária de nudez que sempre abominou nos pacientes.
- Oi filho. Como está hoje? Dormiu bem?
- Estou cansado, mas estaria melhor se você tivesse me deixado continuar a caminhada em busca da caverna dos morcegos.
- Infelizmente não há mais tempo. Nós temos prazos. O Lucas veio comigo para finalizar o que ficou pendente.
- Não gosto dele, você sabe bem disso. Vocês me tiraram do meu objetivo. Será que vocês não se lembram de eu ter falado que tinha uma missão? Não conseguem respeitar isso?
- Claro! Nós sabemos, mas você fugiu, teríamos que ir atrás até encontrar, não é mesmo?
- É muito fácil falar assim. Não é você que está em privação de liberdade. Além do que eu não fugi daqui, eu estava em casa e vocês mandaram uma ambulância me buscar.
- Filho, não delira! Você não mora comigo e nem tem casa. A sua casa é em lugares como esse, e isso já tem mais de dois anos.
- É mentira! Você chamou a ambulância para me trazer para cá. Eu lembro bem.
- Por favor, não começa com delírios!
- Você que vive em delírios, eu sou muito são da cabeça. Todos estão loucos. Inclusive esse seu amigo, que eu não suporto e tem essa cara de porco.
- Filho... Pensa bem... Você ficou incontrolável... Acabou precisando de cuidados. Eu fiz tudo o que estava ao meu alcance, e ainda estou fazendo tudo o que posso com muito sacrifício. Você não tem ideia de como custa caro mantê-lo aqui. Você sabe que eu tive que vender a sua caminhonete abaixo do preço para cobrir tantos gastos urgentes.
- Pare! Não quero saber mais nada!
- Colabore. Se não fizer isso, tudo será mais difícil, vai demorar mais tempo para terminar seu tratamento.
- Vão embora, quero ficar sozinho. É bem melhor ficar só do que ter alguém que distorce a realidade. Assim acabarei mesmo ficando louco. O que veio buscar? Diga logo porque eu estava muito ocupado quando você chegou.
- Não se faça de desentendido. Preciso da última parte do conto. O Lucas veio comigo como representante da editora. Você sabe muito bem que ele precisa levar o final hoje para ser revisado e publicado, caso contrário pagaremos uma multa altíssima.
    Olhamos um para o outro. Longos segundos sem dar um pio.
- Não fiz tudo! Não tenho nada para entregar! Não terminei ainda! Não enche meu saco!
- Então o que são essas folhas saindo da mochila ao lado da cama?
- Apenas rascunhos.
- Posso olhar?
- Não! – disse eu – Tudo o que já vivi está presente ali. É melhor que não veja. Preciso burilar o que de verdade aconteceu com o Re e Miss C, talvez eu nem pudesse revelar esse final ao público... Na minha caminhada cheguei a triste conclusão que aquilo que a gente pensa e escreve é o que desejamos que aconteça. Sinto muito, mas... Quer saber de uma coisa? -----pausa----- Definitivamente não posso lhe dar esse final. Acho que você está arrumando um jeito para que eu passe o resto dos meus dias nessa casa de loucos escrevendo contos para você e a editora ganharem fama e dinheiro às minhas custas. Quantos mil exemplares foram vendidos dos dois últimos contos que escrevi?
- Filho... Filho... Novamente você está delirando. Eu nunca ganhei nada com isso. Todo dinheiro sempre foi revertido para o seu tratamento.
- Mentiras e mais mentiras! Chega de conversa! Você prometeu que me tiraria daqui ano passado. Depois disso já escrevi esse conto praticamente inteiro. Eu preciso voltar para a minha casa.
- Será que nunca vai aceitar que não tem casa? Quando sair daqui você irá morar comigo.
- Não quero morar com você nem que a vaca tussa! Prefiro mil vezes morar com a minha musa Miss C. Talvez ela esteja à minha espera em algum lugar. Eu sei que ela não procuraria porque nunca teve muito senso de iniciativa para coisas boas, mas quem sabe se eu ligasse ou mandasse um e-mail...
- Ai ai ai... Filho, por favor, pare com isso. Miss C não existe. Você criou a imagem dela por sugestão dos médicos, não está lembrado? Eles disseram que seria ótimo para sua recuperação se tivesse um amigo ou amiga imaginário. Você fez tantos amigos imaginários que acabou criando tramas interessantes com eles. O doutor aconselhou que escrevesse tudo em detalhes. Isso o deixou bastante calmo melhorando a concentração. Miss C foi apenas uma entre tantas personagens de quem um dia você já escreveu. Os médicos me disseram que talvez Miss C fosse aquela que mais reforçou o seu espírito criativo, porque a considerou sua namorada imaginária. Você sabe muito bem que existe uma magia muito grande naquilo que escreve sobre ela. É algo tão vivo e espontâneo que parece mesmo fruto da realidade. A sua escrita emocionará e envolverá as pessoas que lerem o conto Miss C. Eu imagino que elas se colocam no lugar de cada personagem, imaginando a própria vida sendo descrita a cada linha. Um dos doutores me confidenciou que Miss C é um tipo de alter ego da sua personalidade conturbada. Que algumas características da fala dela também são suas. Em momentos da narrativa, naquilo que já temos em mãos, isso fica bem aparente. Você está de parabéns, foi fantástico ter feito assim. O namoro virtual com a sua musa acabou expondo todas emoções necessárias para a terapia bem sucedida. E ao mesmo tempo possibilita que publiquemos mais uma parte da sua obra. O fato é que as lembranças boas e os conflitos imaginários estimularam o seu ego de forma positiva. Eu nunca cheguei a crer muito nessa análise tão otimista da equipe médica nos últimos meses, os médicos, às vezes, não falam coisa com coisa e batem cabeça, apesar de terem estudado muito para isso. Vai saber se estão mesmo certo...
- Você está me irritando com esse blá blá blá... Miss C existe sim, ela faz parte da minha história de vida. Exatamente por isso não posso dar o capítulo final agora; toda a verdade sobre nós dois seria revelada; isso não pode acontecer, é comprometedor demais para mim, entende? Seria o relato mais dramático da minha experiência ao lado dela. Poxa vida... Agora eu entendo tudo... Olha... O Zé Louco me avisou que eu passaria por uma provação. A minha provação é você com seus interesses escusos. Você me envergonha! Eu quero falar com a Nina. Para onde ela foi depois que seus capangas me pegaram na estrada?
- Meu filho... Não complica! Miss C, Zé Louco, Nanda, Nina e todos demais são personagens da sua mente criativa. Eles não existem de verdade.
- Claro que existem. Nina estava comigo na estrada, você não viu? O seu amigo investigador até deu um “oi” para ela.
  Nesse momento o amigo vira o rosto para esconder um risinho meio irônico.
- Re, presta bem atenção: você estava andando sozinho numa estrada deserta, não podemos demorar aqui. Passa o que fez. Se estiver bom fechamos o conto assim.
- Vou falar uma coisa muito séria. Eu sou perfeitamente normal. Esse é um grande problema para você, não é mesmo? Sei que pretende me manter aqui pelo resto dos meus dias. Por que você não me respeita? Eu sou um artista, um escritor... Todo escritor tem de ser um pouco maluco para concatenar as ideias de forma inteligível e que outros entendam, é o que sei fazer. Se você não me tirar logo daqui, fugirei para tão longe que nunca mais poderá me encontrar. E adeus o seu bem-bom!
     Minha musa, ela ficou me olhando sem entender o significado daquela afirmação categórica. Coçou o queixo e percebeu que eu não estava mais sendo submisso à vontade dela.
- Filho, não fique irritado que piora o seu estado. Eu sei que você é um artista, um belíssimo escritor, mas não precisa fugir para provar seu dom. Todos nós sabemos do seu potencial.
- Você sabe do meu potencial? Bem imagino que sua conta bancária saiba mesmo do meu potencial! Já pensou o que seria de você se eu fizesse como alguns artistas que cometem suicídio para ficarem famosos? Lembra que fim teve Rembrandt? Quem sabe não aconteça o mesmo na nossa família? Ao meu ver não faz diferença o tempo que demore até receber algum reconhecimento digno. Agora para você... Nem sei dizer o que será, já que nem sabe juntar uma consoante com vogal, não herdei meu talento de você, isso é óbvio. Eu nunca fui preguiçoso ou aproveitador do talento alheio. Mas você... kkkkkkk... Eu juro, só queria que Deus tivesse me dado essa vocação mais cedo. Pois o fato de ter “amigos verdadeiros”, como se fosse uma família, fez de mim alguém alegre, mas sua visita só me traz tristeza. De certa maneira, lá fora, o destino me ajudou, ao mesmo tempo em que era consumido pela dor ao constatar a mãe interesseira que tenho. 
     Em minhas fugas eu rezava todos os dias para que alguém me mostrasse o caminho. Há muito tempo cheguei a pensar em escrever, mas era mais um sonho que uma possibilidade. Muitos anos se passaram e não atentei ao tipo de armadilha que cairia. Pelo menos posso dizer que sou outra pessoa quando estou escrevendo. Quase nem me reconheço quando me misturo a todos personagens. Fico tão cheio de pensamentos nas cenas para realizar que acabo envolvido em mim mesmo por um logo tempo, mal vejo os dias passando. Sim, uma vez eu tive uma mãe boa; você foi uma boa mãe enquanto ainda estava livre de ambições e influência negativa de amigos ambiciosos como ele. E agora recebe os louros do meu trabalho. Eu vi a sua entrevista na televisão sobre o futuro lançamento do livro e nem sequer citou como eu vivo.
- Por favor, filho, você está imaginando coisas. Nunca fui em programa de televisão.
- Ahhhh tá... Cococorócocó... Tenho comigo algumas moedas no bolso. Vocês precisam de trocado para pegar ônibus? Com toda certeza, não! A Mercedes Benz está lá fora, né mamãe?
- Não é minha é da empresa editorial!
- Acha que sou tonto? É mesmo muita esperteza da sua parte. Vocês não passam de sanguessugas. Eu sou um otário em continuar entregando os meus escritos na esperança que um dia me tirará daqui. Vou ligar para Miss C ainda hoje para convidá-la a uma viagem sem destino pelo mundo afora. Outro dia eu vi várias imagens dela na cordilheira dos Andes, ela brindava e sorria com as irmãs. Que coisa mais linda aquela cena familiar regada com taças de Casillero Del Diablo e o reflexo do Sol na neve dos primeiros dias da primavera no Chile. Ela gosta tanto de viajar... Acho que ela mora atualmente nos Estados Unidos, quem sabe já chegou ao Brasil para visitar parente e está num cruzeiro indo para Angra dos Reis...
- Meu filho querido... O horário de visitação está acabando. Precisamos ir embora. Pode me entregar os papéis? – Já bem mal-humorada
- Sim, eu posso. Você terá que juntar as cinzas.
- Como assim?
- Essas folhas estão em branco. O verdadeiro rascunho eu queimei durante a viagem para Salesópolis. Num ponto da estrada existe um casarão abandonado, usei as folhas da agenda numa fogueira para me aquecer durante a madrugada.
- Não acredito... Puta que pariu, isso não é justo! - Ela corre incrédula e pega os papéis em branco saindo da mochila surrada - Bem... Acho que tem um jeito, reescreva com calma que amanhã no fim da tarde virei buscar.
- Não! Eu não escreverei uma só linha enquanto estiver aqui. Eu sei muito bem que entrou na justiça com um pedido de interdição temporária, alegando que sou um incapaz e débil-mental.
- Não fiz nada disso. Jamais faria algo assim! Você não tem mesmo jeito, continua delirando e inventando coisas. Eu pensei que tivesse feito progressos com o tratamento e logo poderia sair daqui, mas infelizmente está ficando cada vez pior. Em menos de dois anos esse já é o terceiro lugar que contrato para cuidar de você. Você não ajuda, nunca se adapta, briga com todo mundo e cria caso, agride as enfermeiras e médicos, ninguém suporta o seu jeito.Talvez terei que contratar por mais três meses o serviço dessa clínica na esperança de um resultado melhor. E dessa vez pedirei a sua mudança para a ala de segurança, onde não tem as regalias da sala de recreação com TV e internet. Isso se eu não resolver mandá-lo de volta para Itapira. Você sabe muito bem como é lá, não sabe?
- Pode fazer o que quiser. Mas não terá o que veio buscar. Faça assim: escreva você o final do conto. Cansei dessa ladainha. Acho melhor irem embora e não voltarem nunca mais. E tem outra coisa: se não retirar o pedido de interdição judicial e passar os direitos dos contos para o meu nome, me tirando daqui definitivamente, vou chamar a imprensa para contar o que tem feito. Vou desmascarar você e essa trupe de usurpadores do meu talento!
- Você acha que eles acreditarão em alguém que está internado numa clínica?
- Tenho excelentes argumentos e fortes verdades a seu respeito. Se isso não resolver chamarei Miss C para lhe cobrar os direitos autorais da parte dela. Garanto que ela saberá direitinho como fazer tortura psicológica em você.
- Que saco! Já falei que Miss C não existe!
- Existe sim... Outro dia eu vi uma foto dela na internet beijando um cachorro.

Minha adorável Miss C.
Desejo que os seus caminhos estejam sempre iluminados.
                                              Re


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Cansado e Velho

Minha história gira em torno de mim mesmo, — uma vida quase nas portas do delírio na mente de muitos —, com o intuito único de conti...