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segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Uma Viagem Romântica 10

   
     Karla decidiu levantar para se arriscar entre as pedras. As árvores do abismo iam ficando mais distantes e escuras com o cair da noite, os pequenos arbustos entre as pedras mais opressivos, como se juntando uns aos outros com a intenção de barrar-lhe o caminho. Mas, entre os arbustos predominava uma espécie de caminho estreito que serpenteava, subindo até a pedra grande que dava no paredão. A sequência do caminho continuava por deslizamentos perigosos, nada aconselháveis para caminhada na escuridão daquele ponto em diante. Nesse instante surgiu uma espécie de nuvem cinza que parecia iluminada - vinha lá do alto do paredão. Karla ficou alguns instantes diante da pedra gigante, meio envolvida pela nuvem e pensando o que fazer. Os ombros dela começaram a ficar encurvados, um ombro um pouco mais baixo do que o outro, e os braços largados como se tivesse sido enfraquecida por uma força mais poderosa que ela. Percebi, mesmo em meio aquele denso nevoeiro cinza, que sua expressão era de cautela e embaraço, respirando devagar e intensamente, sem fazer qualquer movimento brusco. Eu me espantei com seu sorriso misterioso quando ela se virou e ficou de perfil, dando-me uma visão perfeita do ponto em que eu estava na pedra em formato de concha. Veio dela um sorriso malicioso, belicoso e iluminado que mostrava todas as dobras do seu rosto, inclusive uma artéria fina e azulada do pescoço. Mas de repente ela ficou assustada. Mudou o semblante e voltou com passos apressados até o meu local.
     - Ronnie. Você viu o que eu vi e ouviu o que eu ouvi?
     - O que você viu e ouviu além da pedra, do assovio do vento e da névoa?
     - Preste bem atenção, não vá de maneira alguma para aquele lado, tem alguém ali nos observando, mas não parece perigoso, só um vulto um pouco estranho que não consegui definir se era homem ou mulher. Eu ouvi uma música estranha saindo do paredão e ela me fazia flutuar e me puxava para dentro. Senti meus pés se erguerem do chão e girei um pouco no ar. Até me dá arrepios só de comentar.
     -"Um vulto um pouco estranho"? - Sorri e acrescentei - Era assim que falavam de mim há muito tempo atrás, quando eu era apenas um adolescente de cabelos compridos.
    - É sério Ronnie. Reforço o aviso: cuidado, não olhe para lá!
    - Ahhhh... Está bem Karla, seja qual for a criatura que estiver ali ela tem medo da gente, pois ainda não se mostrou na claridade. Você deve estar vendo os galhos balançando e imagina que seja um fantasma. Sente-se aqui. Vamos conversar sobre a vida enquanto olhamos a lua subindo do horizonte. Você gostou da sua fase de adolescente?
    - Não mude de assunto. E se essa pessoa quiser nos aprisionar aqui? Tipo, para sempre? E se for um bruxo ou feiticeiro tentando nos capturar para nos transformar em animais que saltam da beira do precipício e voam em direção à lua?
    - Pare com essas conversas esquisitas. Deixa essa impressão para lá. Naquela pedra não tem nada, não tem ninguém, é só mato. Vamos falar outras coisas para amenizar o clima. Responda o que perguntei.
    - Sobre o que?
    - Como você passou sua adolescência e como você percebia a vida naquele tempo.
    Karla se mantinha inquieta, olhares sequenciais para o caminho de arbusto que levava ao paredão, cada vez mais coberto por névoa. Estava difícil para ela se focar no assunto e na resposta esperada. Começa titubeante.
    - Então... Tinha muitos fatores psicológicos e familiares envolvidos. Muitas doutrinas de pai e mãe. Posso falar que cresci num ambiente, - de acordo com o pensamento do meu pai - em que o bom mesmo era sofrer, era se sacrificar... O lema era: "O sacrifício que enobrece a alma", ou, "Mate um leão por dia!". Eu passei muitos anos da vida entendendo como verdade o discurso. Eu achava que no final do enorme sacrífico eu teria a glória e o paraíso à minha espera. Aí, eu queria que as pessoas olhassem e percebessem que eu estava transformando o suor do meu rosto, e os anos que me dediquei aos estudos, num troféu. E eu, imaginando lá com meus botões, passava essa impressão desejando o reconhecimento com um pensamento permanente: "Olhem só como eu me esforço. Observem minha luta e meu sofrimento por aquilo que estou buscando na vida!". Só que ao mesmo tempo acontecia um fenômeno dentro da cabeça com o seguinte pensamento: "Sofra você também para ser digno da minha admiração!". Triste isso. Só que chegou um dia que eu simplesmente desisti. Eu falei: "Isso não serve mais para mim!". Sabe por que? Eu vendia o discurso que o meu sofrimento vinha de problemas e infortúnios pela falta de reconhecimento dos meus pais na minha capacidade de vencer na vida. Mas no fundo não era isso. Era um discurso que penetrou no meu cérebro de forma subliminar e ficou enraizado lá desde a mais tenra infância, através da doutrina recebida deles. Era o discurso de família que passou de geração à geração. Criei coragem e parei de me martirizar, parei de me sacrificar até a última gota, por que acabei enxergando que não iria chegar em paraíso algum. Eu desisti de achar que o sofrimento iria me trazer algum benefício. Entendi que o sofrimento só atraí dor, problemas e infortúnios. Foi bem complicado, mas eu consegui me desapegar desse jeito de mentalizar as coisas. Eu virei a chavinha dos meus pensamentos e matei aquela personalidade que foi construída no meu cérebro. Finalmente emergi de forma potencialmente  livre e sem os sofrimentos inúteis que nada constroem. Fiquei mais feliz, uma pessoa mais próspera nas ações e costumes. Se acaso eu não tivesse abandonado essa carapaça de defesa, a qual eu usei a vida toda, provavelmente não teria chegado até aqui com o resgate do meu Eu que eu desconhecia.
        Karla silencia e dá um tempinho no raciocínio voltando o olhar para a trilha de arbusto. Aproveito para emendar uma frase, fazendo com que ela continue se distraindo com suas lembranças da análise de seu próprio comportamento.
     - Olha só... De repente você resolveu soltar o verbo, no bom sentido é claro, estou gostando. Sabe o que eu penso sobre a vida ou a verdade com a qual nos habituamos? - Tenho a convicção que cada coisa tem seu tempo certo de acontecer. A vida é como a luz. Percebe como nos habituamos a luz da lua nesse exato momento? Se estivéssemos num estádio com holofotes fortes também nos habituaríamos. A luz e a verdade são como a vida que vai se transformando, pouco a pouco, e se não permitimos que isso aconteça, a vida assim como a luz, se ofusca.
    - Sim, sim. Concordo com você. Concordo agora, mas talvez não concordasse antes, por que o programinha que veio de fábrica instalado na minha cabeça me mandava sofrer e essa era a forma de ser uma pessoa iluminada. Eu agia, inconscientemente, de um jeito que não me fazia bem, mas que só vim perceber depois, quando aniquilei as amarras. Decidi que deveria me libertar e não experimentar mais os sofrimentos que aprisionam e fazem a pessoa ir definhando. O pior de tudo é que se alguém, cinco anos atrás, me perguntasse se eu era feliz, com muita convicção eu diria que sim. Nossa, como eu estava cega!!! Só agora eu sei que eu era uma sofredora crônica e insana. Eu trabalhava muito, muito mesmo. Como se não houvesse qualquer outra coisa que pudesse me trazer recompensa. Nos dias da minha folga eu acordava cedo, mesmo que não tivesse nenhum compromisso, ia passar horas no parque do Ibirapuera ou em algum shopping. Eu não queria ficar em casa para as pessoas imaginarem que eu era uma pessoa folgada. Eu tinha que sair cedinho, acontecesse o que acontecesse. E ainda que meu passeio acabasse mais cedo eu não voltava para casa antes do meu horário habitual. Eu imaginava: "Vão pensar o que de mim? Eu não sou aquela pessoa estilo exemplar? Então tenho que manter essa imagem.". Só que é assim, entenda minha lógica da época: eu achava que o mundo estava precisando de gente eficaz, provedora e competente. Eu nunca havia parado para pensar que o mundo na verdade precisa de gente feliz. A eficácia é para a inteligência artificial, nós, humanos, precisamos ser felizes. No entanto, isso não nos faz crer que não estamos sujeitos a erros. Jamais podemos nos enganar na avaliação do bem e do mal, das pessoas boas e das pessoas más, e acreditar que de repente achando que fazemos o bem estamos fazendo o mal a nós mesmos. Era meu pensamento tacanho. Encontrar uma ocupação para si não significa se matar de trabalhar para ter subsistência. O remédio é o equilíbrio para encontrar o significado da vida, libertando-se das tais amarras com o perdão. O perdão necessário para si e também para os outros. O perdão é o instrumento mais próspero que podemos trabalhar em nós mesmos.
     - Karla, diga uma coisa. Por que mudou o direcionamento e entrou nessa vibe de perdão? Por que considera o perdão tão importante?
     - Posso tentar explicar dizendo que nosso cérebro é como se fosse a maior e mais complexa máquina inventada - evoluída pela natureza para que possamos sobreviver na própria natureza. Como ela faz isso? Usa basicamente duas coisas: "Luta ou fuga". Traduzindo significa, atacar ou defender-se. Nós ficamos o tempo todo querendo atacar ou defender para sobreviver física ou intelectualmente. Esse mecanismo foi doutrinado para situações extremas desde os primórdios da evolução da raça humana, mas usamos esse padrão atualmente por que é isso que aprendemos a fazer para impor nossa opinião, nosso estilo de vida, nossas razões e assim por diante. O perdão entra nesse meio numa situação em que implode essa ideia de defesa e ataque e carrega em si paz e harmonia que cada um espera no dia a dia. O poder que o perdão tem para fazer isso é absolutamente fantástico, principalmente quando abdicamos de alguns defeitos, tipo o egoísmo. O egoísmo é incompatível com o sentimento evoluído e com o amor. Incluo aí a compaixão e a caridade, principalmente quando se está preso aos bens materiais do qual a maioria das pessoas não consegue se libertar. Da mesma forma que uma pessoa que experimenta o egoísmo dos outros pode se tornar uma pessoa egoísta, o mesmo acontece com o perdão, quando tal pessoa se livra da influência moralizadora dos ensinamentos da sociedade e da família. Assim como eu fiz.
     - Uau!!! Por essa eu não esperava. O tempo passa rápido aqui em cima e a temperatura está caindo rapidamente. Fiquei prestando tanto atenção em suas palavras, admirando o seu rosto iluminado pela luz da lua, que nem consegui olhar para o céu em busca da chuva de meteoritos.
     - Tá... Cansei... Agora fale um pouco você. Conte-me de como enxerga a vida. Deixo que escolha o tema. Quero um gole de água, por favor. Obrigada.
     -Ok... Tentarei sair um pouco do assunto que você tratou, mas, talvez, alguma coisa que eu disser possa parecer um complemento da sua maravilhosa explanação sobre a vida. Vamos lá: - Nós, às vezes, pensamos que as pessoas que nos confrontam são as erradas. Mas, por outro lado, essas pessoas pensam que o errado somos nós. Mas por que será que as pessoas que nos vêem de fora conseguem pensar tão diferente da imagem que tentamos passar? Tudo isso faz parte de um fenômeno que eu chamaria de "desunião e divisão". O meio em que vivemos determina que sempre devemos ter um posicionamento a respeito de tudo. O que muitas vezes vai contra o padrão estabelecido e aceito pela maioria. As pessoas discutem e matam por causa de política, pelo futebol e por religião. As primeiras opções que nos dão é sempre a do enfrentamento. Vamos pegar a religião como exemplo: eu sou católico e a outra pessoa é evangélica. Discutimos por causa  disso. Aí o evangélico adventista confronta o batista, ou aquele que é testemunha de Jeová, e diz que ele (adventista) é que tem razão, por isso ele é mais crente em Deus que o outro - inclusive se diz portador de uma verdade maior que os outros desconhecem. A religião faz a roda gigante girar dividindo as massas, seja através dos seus dogmas ou de seus conceitos de certo e errado. Tem também a desunião pelas diferenças de classes na parte econômica: ricos e pobres, Aphaville e Alphavela; quem tem e quem não tem, quem vive em palácios e quem vive debaixo de viadutos e pontes. Todas as principais bases da sociedade fazem dessa segregação a desunião entre as pessoas. Aí, eu realmente fico pensando, quem são os inimigos dos seres humanos meros mortais como eu? Enquanto eu luto para me libertar, no sentido literal do seu raciocínio tão bem explicado anteriormente, tento ao mesmo tempo entender que a política, a religião, a economia e tantos outros fatores fazem que a gente se desuna, inclusive no pensamento meramente filosófico a respeito da vida. Tudo nos desune. Essa desunião nos torna fracos e dominados. Não quero que ninguém controle ou determine que religião devo seguir, que programa de televisão devo assistir ou que tendência de material didático posso ter acesso para meu aprendizado. A minha revolta vem de fora para dentro e de dentro para fora na questão de comportamento e costumes, desde quando me conheço por gente. Não desejo todo o tempo ouvir repetidamente a propaganda:" Deus, pátria e família". Não quero ser doutrinado. Essas três palavras sempre foram muito bem utilizadas por gente poderosa que desejava conquistar uma nação inteira à força, através do coração, da mente e do poder. Depois da conquista provocar genocídio e massacres  em massa, tudo em nome de um dos três pilares, ou dos três. Olha... Enquanto o amor pelo poder continuar será difícil que o poder do amor triunfe. O que eu vivo hoje no meu dia a dia parece que meus pais e meus avós já viveram antes em algum período de suas vidas. A estratégia invisível, sútil e doutrinadora sempre foi a de colocar uns contra os outros. Nos últimos tempos aconteceu comigo de acordar sufocado no meio da noite, com dor no peito e um enorme sentimento de pesar - meu cérebro funcionava e estava alerta mesmo eu estando dormindo. Parece que minha mente passa todos os dias por um processo de controle do que me faz mal, o qual não tenho menor domínio. Sinto que quem está do lado de Deus está incluído e é aceito na sociedade, os outros, que não lêem da mesma cartilha, estão do lado do diabo e são considerados inimigos. Poxa vida... A vida não pode ser assim. Nós somos iguais. Nós somos seres humanos dotados de amor, de inteligência, de respeito e de carinho uns pelos outros. Até mesmo dessa raiva que leva à desunião e à segregação em nome da razão de cada um. Então eu lhe pergunto, Karla, meu amor: "Como está a nossa vida? Nós estamos num processo de união ou de divisão em nossos interesses e opiniões? Qual foi a sementinha que plantaram na nossa mente e agora está tomando espaço e dominando nossas ações?". Não precisa responder agora. Eu só queria dizer que o sistema quer colocar na mente da gente que não temos poder nenhum. Que somos incapazes de andar por conta própria; de amar e de ter escolhas por aquilo que julgamos mais justo. É assim, mesmo que seja pela simples opção de ter uma vida alternativa e prazerosa longe das garras dos dominadores e seus superpoderes. Até quando continuaremos bobos achando que lutamos uns contra os outros para que prevaleça uma simples divergência de opinião, quando na realidade estamos lutando para nos destruir? Enquanto o medo ficar no lugar do amor será difícil conquistar alguma coisa, até mesmo a mais pura e simples admiração de um homem por uma mulher ou vice-versa. Eu acredito que o Sol brilha para todos. Por isso todos nós deveríamos estar submetidos aos mesmos direitos e às mesmas facilidades. Não foi dada a nenhum homem a superioridade natural que pudesse fazer com que ele escravizasse os outros. Cada pessoa tem o direito ao aperfeiçoamento, seja espiritual, material e intelectual, para ter a oportunidade de um papel útil na sociedade. A desigualdade, seja ela social ou material, nunca foi uma lei natural. É apenas uma obra do homem com seu intuito de domínio, recebendo facilidades e comodidades através do esforço alheio. Não considero justo que isso seja uma espécie de provação dos ambiciosos, ou de egoístas sistemáticos, em cima dos que não tem opção nenhuma, exceto a de abaixar a cabeça e se submeter à resignação permanente.
     - Agora quem diz uauuuu sou eu. Meus parabéns!!! Poderá se candidatar nas próximas eleições. Gostei. Eu admiro homem inteligente que tem assunto e sabe dialogar.
       Karla novamente fica quieta quando deveria continuar com mais algumas frases e fixa o olhar na ponta da escada de madeira - único acesso para visitação.
     - Ronnie, olha lá. Você está vendo um vulto ali parado?
     - Lá vem você novamente com seus fantasmas... Onde é dessa vez?
     - Ali, bem no último degrau da escada. Ele se mexeu. Você viu?
     - Não estou vendo nada. Não tem ninguém. Vou até lá para provar. Fique aqui.
     - Não vá! Por favor. Vamos esperar para ver se ele dá uns passos a mais. Fica quietinho e fale baixo.
     - Estou quieto. Não tem nada lá. Nem homem, nem sombra, nem nada.
     - Abaixa Ronnie, ele vem vindo...

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Muito obrigado por me prestigiar.





   
     
     

Cansado e Velho

Minha história gira em torno de mim mesmo, — uma vida quase nas portas do delírio na mente de muitos —, com o intuito único de conti...