Durante muito tempo você se manteve em posição de defesa - foi
quando o seu coração atravessou noites sem consolo. Ninguém jamais viu os seus
olhos molhados no escuro do seu quarto – eram noites e noites em transe com as
lembranças daquelas palavras doloridas que aos poucos iam lhe corroendo por
dentro.
Numa época à frente,
livre em parte de tal desespero, sentiu que tinha forças para lutar e seguiu em
busca de um alento que amparasse tantas dúvidas permanentes sobre a própria
existência. Foi quando encontrou a mim pelo meio do caminho, e assim entrei por
um tempo em sua vida - acho que eu estava muito a fim de descobrir se mantinha
ou não a posse do meu juízo perfeito, digo, para encarar novamente um
compromisso com alguém tão legal como você era à primeira vista.
Porém, sem demorar
muito, logo percebi que seu olhar era de quem praticamente estivesse à beira da
loucura, guiando-se em seus exemplos por experiências malfadadas do passado -
as histórias que contava eram como um labirinto de ficções intermináveis – em
nenhum momento parecia dizer alguma verdade que me convencesse, mesmo de alguma
questão simples – quando começava a
falar eu já sabia como terminaria e quais os fatos que citaria para dar mais ênfase
ao seu ponto de vista. Rapidamente adquiriu esse hábito e dele criou um grande
leque de possibilidades para a mesma história fantasiosa, que se repetia em
versões mais elaboradas com o passar do tempo. Você temia tanto o confronto com
a verdade, em seu modo arisco de ser, que quando uma ponta de mentira me
motivava desconfiança, você fingia um acesso histérico e dava às costas pisando
duro como se fosse vítima da maior ofensa.
Muitas lacunas
ficaram de nossas conversas, inclusive em discussões prolongadas que
aparentemente tinham um tom de sinceridade.
O tempo passou e você
nunca mencionou alguém que gostasse em sua infância, ou uma brincadeira
especial ou, quem sabe, o desejo do que queria ser quando crescesse - jamais me
falou de uma rua onde pulava corda ou de um parquinho onde brincava no balanço
ou escorregador. Quando um dia lhe perguntei como tinha sido sua infância,
apenas me disse que nadava na piscina (até me deu uma foto daquela época feliz,
lembra disso?). Nunca presenciei um vislumbre em que recordasse uma cena da
qual sentisse orgulho na pré-adolescência - dando sempre a entender - na
expressão sisuda - que jamais se deixaria escorregar numa emoção do passado,
quando as respostas satisfatórias seriam: onde, como, ou os porquês das coisas
terem evoluído assim. Várias vezes eu tentei que relembrasse, mas foi em vão.
Parece que os detalhes daquele tempo lhe causavam tédio ou trauma profundo.
Quando finalmente um dia relatou algo interessante, era como se fosse uma cena
tirada de um folheto de viagens ou de algum livro antigo de histórias infantis.
As reclamações do seu
passado, quando no auge da vida adulta, eram sim muito marcantes. Não havia uma
só pessoa de quem não falasse mal – o tempo que dispúnhamos era preenchido com
reclamações de tudo quanto era tipo, fossem fatos passados ou presentes que
tirariam qualquer um do sério. Nada parecia trazer mais alívio do que reclamar
em tom de desabafo - demonstrando raiva e indignação - e no final quase
derramar uma lágrima sentida. Tive a impressão que você se tornou outra pessoa,
não era mais quem eu conheci com tanto brilho – aos poucos apodreceu e rachou
ao meio. Cheguei a conclusão que depois de tudo desvendado, você imaginava que
eu teria mente fraca e não conseguiria unir os pontos para observar todas as
contradições pelas quais passamos juntos. O grande problema é que sempre tive
excelente memória para aquilo que vejo ou escuto. Justamente por isso seria
praticamente impossível que eu não reconhecesse um jogo de trapaça, ou
distorção, a fim de semear uma nova ilusão em mim. Esse era o seu jogo sempre –
e eu só podia me revoltar cada vez mais com esse seu mundo de mentiras e
falsificações de intenções. Não é de se estranhar, portanto, que inventasse
tudo para o seu próprio prazer em presenciar o meu sofrimento por te amar, e,
inevitavelmente, após algumas cobranças, chegava sempre uma hora que diria do
alto da sua imponente sabedoria: “Você não passa de uma pessoa patética!”. Não
se cansou de demonstrar que eu não era suficiente, pelo menos em sua visão
turva, para participar do seu mundo - às vezes chegava ao cúmulo de dizer que
minhas perguntas e observações eram tão insignificantes que não mereciam sua
atenção. O pior de tudo é que nunca se arrependia do que fazia. Isso era muito
triste!
Pois é, infelizmente,
são essas coisas que rompem o encanto.
Você insistiu tempo
demais nessa combinação diabólica, habilmente mascarada por ações inocentes,
que me fazia acreditar que o mal era eu. Não podia ser eu, pois você sempre se
mostrou imune a todo mal que viesse de fora mantendo-se inatingível.
Sei que se nesse
momento soubesse da minha reflexão solitária, novamente estaria me desejando o
pior. Motivo, talvez, pelo qual imagina que pode seguir pela vida como se passa
entre labaredas sem se chamuscar. Uma hora, quando menos esperar, esse fogo
poderá se rebelar e lhe causar queimaduras com cicatrizes permanentes. E, algum
dia, em seu rosto torcido pela dor, lembrará que mentir, enganar e torcer as
coisas ao seu bel prazer não leva a lugar algum.
Nós dois sabemos que
jamais admitirá abertamente que tudo isso aconteceu assim, digo, na minha
versão, quando afirmo que mentia sempre, com ou sem motivo. Mentia inclusive
dizendo que era meio vidente e conseguia ver o avesso das pessoas descobrindo o
mal dentro delas para se proteger. Mentiras dirigidas, com um objetivo certo de
intimidar reações. Garanto que seria mais simples, por exemplo, dizer que eu
não era interessante e você não tinha vontade de prosseguir. Ao invés disso,
encompridava as mentiras e inventava historias para exagerar as dificuldades em
estarmos juntos e felizes. Porém, saiba que não foi o mal-feito que fortaleceu
minha ira a cada dia, porque acredito que todo mal vindo da perversidade deve
ser destruído; esse tipo de coisa fez a sua vida perecer aos poucos, e não a
minha; mesmo que aparentemente mantivesse o sorriso e a impressão de tudo
certo.
Daí veio a total
consciência do quanto uma estabilidade emocional pode ser colocada à prova em
nome de um bem maior – talvez por cegueira ou a teimosia em prosseguir apesar
das consequências. No entanto reconheço que o mundo de enganos e encantamentos
que me levou até você, foi para que eu colhesse bons frutos de tudo que passou,
e ao final você apenas seguisse adiante em seu mesmo passo.
Nesse momento, no final do monólogo -
antes tão constante em nossa relação - estou finalmente fora do mundo que
criamos juntos, um mundo obsessivo, um mundo que eu erroneamente julgava de
direito e beleza, um mundo de esperança. E se de verdade um dia tive uma esperança
sincera é por que existe alguém lá em cima que gosta muito de mim, ainda que
você tenha se esforçado ao máximo para mina-la aos poucos com o seu silêncio
intenso e aquele profundo desprezo por belas sensações e nobres sentimentos.