Miss C.
Ando sem tempo para escrever porque tenho viajado muito. Fui levado por outros de um lado para outro e quando me dei conta já nem sabia onde estava. Há poucos dias cheguei nesse lugar totalmente novo. Estou numa casa simples e silenciosa, um local rodeado de árvores altas onde se sente a pulsação da vida de um jeito diferente. Os moradores se deliciam com ar puro e fresco vindo das flores que ladeiam o caminho de chão. A noite tem a cantiga monótona dos sapos na lagoa adjacente ao caminho de entrada - para mim é uma cantiga linda e diferente q chama a minha atenção! Algo q parece tão comum para esse povo daqui. Muitas vezes, num fim de tarde, saio para o quintal de braços abertos e paro por um instante como se fosse uma estátua; sentindo o sopro da brisa passando entre as árvores e finalmente libero os pensamentos. Assim fico encantado. Se nunca ninguém passou por isso não sabe a alegria que proporciona esse tipo de torpor bom. Esse lugar parece longe do centro da cidade, distante dos habitantes fazedores de barulhos e criadores de estresses. Dizem que esse lugar me deixa mais calmo e que passarei aqui algum tempo q poderá ser até o final deste ano. Eu me sinto em casa, é um lugar onde posso criar e escrever sem me preocupar com a rotina de horários e obrigações; ou das infinitas contas para pagar. Hoje, porém, está difícil escrever, pois ando com as mãos tão cansadas que se pudesse ditaria para alguém aquilo que eu gostaria que chegasse até você. Espero que a última mensagem que lhe enviei você tenha lido com atenção. Primeiramente, quero que saiba que me deu um enorme prazer ler suas mensagens que estavam salvas no celular - as quais eu ainda não tinha lido - finalmente vi algo de concreto em suas atitudes. Quanto mais examino suas palavras mais acho que são efetivamente reveladoras; nelas descubro muitas coisas boas. Fiquei imaginando a cena da perseguição doméstica tão fielmente relatada - já que um dia me disse que perambulava dentro de casa pelo meio de tantas mentes vazias - as quais se abalam pelos mais incríveis temores; e que ainda se sente, porém menos, sendo seguida por aqueles olhares como se a quisessem devorar.
Mudando de assunto: não sei por que, mas de repente me lembrei do seu incrível gosto pelo mar. Aquele cheiro do mar e o barulho das ondas quebrando na praia a noite... Que saudade me dá daquelas ondas incontroláveis molhando a areia branca da pequena praia deserta com enormes pedras nas laterais! De repente me vejo de novo naquele eterno silêncio que tomava conta dos nossos pensamentos enquanto mergulhavamos
no escuro. Sim, lembro dos nossos velhos tempos enquanto cantarolo versos da música do Lulu Santos que você tanto gosta que fala da lua e seus encantos insondáveis.
de Babilônia e Xanadu
Meu Xangrilá és tu
tesouro do Eldorado
Sou teu guerreiro de Esparta
teu guardião
Selena que me ilumina o céu
e organiza os oceanos
É teu meu tempo e mais
é tua a minha história
é teu meu reino da memória
Ó Feiticeira de Judah
que me incendeia e faz voar
Sereia do meu mar
astronave do meu ar
Edelweiss do Himalaia
tu és maia, tu és má
Tu és a deusa da ilusão e eu te amo...
Enquanto o tempo passa vou criando um tipo de desgosto que mina a admiração que ainda restou Chega num ponto que não tem mais volta e a única solução é o lamento. Sei que isso aconteceu conosco porque nunca me deixou uma escolha onde prevalecesse o respeito e a amizade. Você ainda se lembra do meu olhar? Aquele olhar às vezes magoado, outras vezes humilde e resignado? Pois bem, saiba que aquele olhar ainda é o mesmo; um olhar trancado na solidão que só serve para agravar cada vez mais a minha situação. Causa em mim um tipo de repugnância essa espécie de intimidade mental que ainda temos. A sua solidão é a minha solidão e a sua dor é a minha dor. Mas isso aconteceu conforme já temíamos um dia: o orgulho fez de nós intrusos na vida um do outro; o egoísmo nos colocou vendas e a vaidade ergueu muros. Vendo as coisas assim reconhecemos a verdade que desde o início já sentimos um tipo de aversão indisfarçável um pelo outro - com sensações impossíveis de evitar quando o caráter dominador prevalece mutuamente. A curiosidade nos fez esquecer essa tal aversão, revelando em nós certo espírito de camaradagem aliado ao senso prático, tornando a vida mais suave e criando ilusões temporárias. Cremos com isso que acenderíamos uma fagulha, reavivando as cinzas apagadas, mesmo que fosse esse o nosso último sopro de esperança depois de uma dura frustração. Era uma ideia que estava fixa em nossas mentes, mas havia coisas que eram muito difíceis de serem feitas apenas com palavras, era preciso força de vontade na atitude - sem a qual o inferno estaria à espera, assim como aconteceu. Puxa vida, durante grande parte do tempo você tinha atitudes que não concorriam de forma alguma para conquistar amigos ou manter um amor. Você semeou a dúvida a todo instante. Tantas exigências provocaram brigas sem fim e, quanto mais era exigido menos era dado, dos dois lados. Talvez de nada sirva que eu analise uma por uma daquelas brigas agora. O que eu poderia dizer agora a respeito da sua tendência para eterna dúvida ou da sua incapacidade de harmonizar o que acontece dentro e fora, ou tudo aquilo que ainda a oprime? Seria mais uma vez repetição do que eu já disse. No entanto, reforço a ideia que poderá tornar-se uma pessoa muito boa se educar-se novamente, se prestar mais atenção no que a rodeia. Quanto aos sentimentos: se aprofunde naqueles que guarda dentro de si, mas se forem impuros, do tipo que deformam o seu caráter, livre-se deles. Toda intensificação do que é bom tornar-se melhor. Compreende o que quero dizer? Agindo assim, os seus pensamentos sempre serão os seus melhores colaboradores, ajudarão na construção da sua vida com uma existência firme e concreta. Seja em que ambiente for - no meio do seu deserto particular, ou na mais esplendida devoção às grandes coisas da natureza que tanto aprecia - pratique bons pensamentos. Tome como exemplo essa nobre arte a qual se empenha tanto da hora que acorda até a hora que vai deitar-se. Ela exige paciência e atenção, é o seu caminho para viver moldando-se à vida. Cedo ou tarde saberá que nela está o seu mais forte abrigo diante de tantas circunstâncias negras e passageiras. É nesse dom artístico e profissional, somado à inteligência que nasceu com você, que irá educando a sua atenção na melhor observação de tudo que opera a seu favor. Faça disso a sua mais linda maneira de viver, mesmo que a solidão ainda não possa ser definitivamente riscada da sua vida (falo daquele pedaço que sempre julgamos estar faltando). As causas sempre estão dentro de nós, é ali que devemos procurá-las e assim ir conduzindo o temperamento. Mesmo que em algum momento sinta que um clima de neurose se estabeleça fora de controle ou que a limite com esse medo que não a deixa sair de casa ou a faz voltar correndo para ela, tornando as sensações do mundo de fora menos flexíveis e mutáveis, lute contra isso! Se continuar assim esse medo a engolirá por completo, mesmo que ainda insista em manter essa expressão de austeridade estampada no rosto. Tente! Esse exercício irá purgá-la das misérias humanas tão comuns na vida de qualquer um. Quando o seu pensamento se elevar o seu coração começará a cantar, ainda que pense que não se pode amar aquilo que já foi destruído. O seu nome me sugere uma série de recordações doces e fluídas ao mesmo tempo dolorosos pensamentos. Recordações sempre agravadas pelos ecos transviados dos sons penetrantes vindos do mundo exterior ao nosso. Eu entendo que algumas tentações não podem ser combatidas agora, que a única coisa que resta é fechar os olhos para fugir do que sufoca. O maior alívio que sinto nessa hora não é o da fuga de mim mesmo e nem de você, muito pelo contrário, vou sempre me impulsionando para frente como se estivéssemos juntos, sentindo que as palavras de conforto que encaminho aos seus cuidados também servem para mim. É como uma troca, percebe? Faça o mesmo, ainda que em pensamento. Seja generosa alguma vez, por que as únicas marcas que merecemos levar pela vida afora talvez sejam as recordações das mordidelas de amor e nada mais. Sei que a qualquer momento poderá perguntar por que estou nesse círculo vicioso já que me considera tão inteligente. E afirmará ao final que sente vontade de rir ao ler minhas palavras. Não seja tão severa e irônica. Isso não é uma aula, nem lição de moral, são apenas palavras regadas por pensamentos amáveis destinados a você e que vão como resposta a tudo que também já escreveu no momento de abrir o seu coração.
Os meus pesares me incomodam tanto quanto os seus. É certo que nem pode imaginar quando muitas vezes acordo no meio da noite, torturado por maus pressentimentos, e saio do quarto para ficar longos minutos sob o luar pálido da madrugada. Quando olho para aquela claridade percebo uma sombra, uma imagem fixa e sofredora se esvaindo suportando infinitas tribulações. Isso é o que me dá toda a força para continuar, pois esses pensamentos não mais me pertencem e em breve chegarão outros. Por que diante dos meus olhos brilha essa paz prateada, num caminho manso e discreto, de onde recai sobre mim toda luz que absorve o sentido de estar novamente aqui pelos motivos errados.
Desejo que leia e se puder releia essas palavras e viva as partes boas com toda intensidade e carinhos possíveis.
Os meus bons votos e saudações.
Do seu admirador
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