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quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Uma Viagem Romântica 3

      "É claro que tudo pode não passar de uma fantasia" - Falei comigo mesmo e me mexi...
     Deslizei para o lado e relaxei num cochilo que começou com uma vertigem. Parecia que minha alma estava deixando meu corpo e eu flutuei. De repente fui atirado num profundo precipício nas águas mornas e turbulentas de algum lugar próximo da praia das Toninhas. Descendo, subindo, descendo mais e girando, eram grandes espirais como órbitas que não tinham fim e me faziam imaginar que iria acabar em algum lugar como a Atlântida. Durante essa viagem sem fim, uma paisagem encantadora e inacreditável da vida submersa se desenrolava na velocidade da luz diante dos meus olhos que não paravam de se mexer. Enormes monstros marinhos moviam-se e brilhavam com o reflexo da luz que vinha de cima, através do movimento das águas que formava um arco-íris que se movia de convexo para côncavo em fração de segundos. Enormes plantas com raízes a perder de vista flutuavam ao meu redor, acompanhadas de formações de cardumes em espiral parecendo uma esponja gigante em cores curiosas, alguns de um vermelho bem clarinho e outros mais escuros e brilhantes como as explosões solares vista da terra por telescópio. Em meio a essa maratona da vida aquática germinavam milhares de criaturas humanoides místicas, semelhantes a elfos e gnomos; tais seres brotavam das profundezas como bolhas num vulcão oceânico. 

      Uma enorme explosão dentro da minha cabeça, seguida de um click, deu lugar a uma melodia triste da natureza terrestre; fui tomado por terremotos e matas em chamas emanando nuvens de fumaça escurecendo o céu por milhares de quilômetros, inclinadas à própria sorte das brisas outrora perfumadas. E do nada as nuvens de fumaça sumiram. Corro em corpo de índio por entre árvores frondosas com animais barulhentos pendurados em galhos e pássaros esvoaçantes com plumagem de todas as cores insólitas. Há em minhas costas um arco e aljava lotada de flechas prontas para atingir o peito do bicho-homem-branco que me persegue para ocupar o espaço que é meu. O arco reluzente é de ouro e as flechas místicas tem visgo mortal nas pontas para o alvo certo.
     
     Conforme penetro mais e mais na mata, a música na minha cabeça soa como algum canto gregoriano entoado meia-noite numa catedral gótica da Romênia, o foco de luz que indica o caminho atravessa a copa das árvores e é mais dourado que o arco; o solo está forrado de folhas macias, de um vermelho cor de paixão e medo. A beleza desse vermelho é tanta que fecho os olhos e sonho dentro do sonho, mas ele é escuro. Quando acordo desse segundo sonho a floresta desapareceu. Então me sinto sem energia e me pego de pé diante de um quadro pintado a óleo, um castelo com uma torre enorme, uma linda cena do campo é representada diante desse castelo, como se o vazio se materializasse ante os olhos, e fosse mais imponente que a presença da torre ou os segredos indecifráveis do castelo. 

     Chegando mais perto do quadro existem incontáveis espectros sombrios movendo-se pelos cantos, numa elegância medida que faz parecer grotesco o movimento do chão que não existe sob os pés dessas sombras. Ao me aproximar mais, penetro na tela e acompanho o vento que sopra na planície rumando para a linha do horizonte. A porta gigante do castelo se abre e uma linda mulher de quadris rebolantes, pernas torneadas e longos cabelos vermelhos surge vestindo uma roupa indiana, carrega uma caixa prateada e se dirige a mim, ela diz seu nome, mas não consigo entender, sua voz soa como as águas de um rio raso correndo sobre pequenos pedregulhos. Ela me conta o quão lindo é voar pela praia à noite, aterrizando algumas vezes nas pedras gigantes para descansar e apreciar o recuo da maré. Mas seria preciso tomar cuidado quando se voa próximo aos condomínios fechados porque, algumas vezes, os vigias poderão atirar em você. Ela me beijou os lábios enquanto eu escutava. Logo um pensamento passou por dentro da minha mente transfixada questionando a loucura dela. Mas antes que eu pudesse pensar qualquer coisa, ela flutuou para longe, bem diante dos meus olhos, e transformou-se em uma sereia azul-cintilante com um par de asas purpuras e belos tentáculos ondulantes no lugar dos dedos. Com um sorriso e uma piscadela de um de seus olhos muito hipnóticos, que eram da cor do mel, ela começou a derreter para dentro do chão, como se fosse uma minhoca fugindo do bico do pardal - fluiu para o centro da terra como se estivesse em seu oceano azul-esverdeado com pequenos peixes cromados pulando para fora da água para se transformar em vaga-lumes. Ao mesmo tempo observei meus pés também derreterem para dentro da terra e se desligarem de mim como se eles tivessem entrado em um buraco negro no espaço. De alguma forma, dentro das poucas horas seguintes, todas as moléculas do meu corpo e o dela se misturariam e, juntos, formaríamos uma nova e insaciável criatura. Acontece que, depois de toda essa sensação do seu plano cósmico diabólico que me hipnotizou, tudo o que aconteceu entre nós foi apenas aquele único beijo. E, ela, a passos rápidos continuou seu caminho para uma pequena torre dentro do castelo, bem acima de uma suave elevação no fundo do pátio, até então, invisível com a porta fechada. Permaneci parado e segui com o olhar os quadris inquietos, até que se perdessem numa escada lateral da pequena torre. A mulher desapareceu. No entanto, do nada, meus olhos recebem uma nova recompensa com uma visão mais mística. 
     
     Sinto-me como se houvesse chegado ao final da civilização, a raça humana extinta, onde todos os segredos do universo se escondem. Estou preso numa redoma cujos limites não parecem palpáveis e meus olhos não conseguem observar o fim. Dois passos à frente há um arbusto que balança e abre portais que passam imagens sincronizadas em milésimos de segundo, mostram as tragédias e as guerras da civilização e os momentos de carinho e paz da convivência entre os animais. A visão me aterroriza e fascina, mas ao desviar o olhar por um instante toda a cena muda. Em vez de imagens no estilo cinematográfico começam a cair do céu, ao alcance das minhas mãos, flores de cerejeira. Em meio a essa chuva surge Karla caminhando charmosamente com pés descalços, com colares, brincos, anéis e lenços de seda cobrindo o corpo inteiro. Não é a Karla com a qual acabei de fazer amor, embora reconheça de imediato seus contornos perfeitos, aguardo na expectativa suas observações do meu sonho. Em vez disso ela abre bem a boca e sai de sua garganta um fluxo de notas musicais tristes que ficam desenhadas no ar e vão subindo para o infinito. O meu sangue esquenta e o rosto fica vermelho enquanto os olhos sobem aos céus acompanhando o desenho das notas musicais flutuando em turbilhão, passando perto do meu nariz. Quando abaixo o olhar percebo que ela está de costas e nua, disponível, seus quadris são idênticos aos da linda mulher que carregava a caixa prateada e se transformou em sereia. Chego mais perto para abracá-la e ela se vira, mas dou um passo atrás muito assustado, percebo que um escorpião desceu pelo ombro e rasteja sobre o seu seio esquerdo. Como se estivesse possuído por uma força vinda do além, corro desnorteado apalpando as paredes invisíveis da redoma com o coração a ponto de explodir. 

      Uma nova coisa estranha acontece. Como não existe nenhum vegetal ou vida humana palpável nessa imagem, aprecio apenas o campo com o castelo ao fundo e sua enorme torre. De repente tudo vai se desintegrando e no meio do chão se abre um imenso abismo no qual o castelo afunda e vai para aniquilação completa. Não houve qualquer aviso, para numa fração de segundo tudo sumir e pairar uma calma sinistra em meu olhar; um olhar débil, tão débil como se fosse a minha própria realidade.
     Uma deliciosa sensação de desmembramento ainda me domina e eu volto às águas mornas e misteriosas do oceano atlântico, perto da praia das Toninhas, sentindo Karla movimentar-se ao meu redor como se fosse uma sereia ou uma estranha total. Coloca a mão em meu ombro e pergunta: "Com que está sonhando?", a sua voz vinha de longe, muito longe. 

Sonhando... Sonhando, eu? Eu achei que não sonhava nada - respondo
Ela insistiria então, dizendo que havia uma expressão no movimento dos meus olhos. 
"Não é nada", respondo rispidamente. "Eu nunca sonho".

"Está pensando no que vamos fazer amanhã? Eu suponho". 

"Isso mesmo" - concluí secamente.

Em seguida ela se afasta me deixando entregue aos meus próprios delírios para imediatamente voltar aos devaneios a três andares acima da terra. Onde posso flutuar sem ser incomodado, e observar tudo de cima, e assim ver somente aquilo com que sonho numa paisagem completamente móvel e tão fugaz quanto a névoa. 
  
   Continuo e vou revivendo uma experiência de criança: um momento em que se vê ou se sabe algo pela primeira vez. Naquelas horas eu era a sombra sem nome do menino experimentando a maravilha de observar a sua própria imagem diante de si. Em raras vezes conseguia essa experiência de sincronismo com o pensamento, em ser apenas um fragmento da imagem de mim mesmo diante do meu eu real e da normalidade. Fazia a experiência sozinho. Pois, tudo, ou qualquer um, que seja diferente é devorado pelo senso-comum, pelo mainstream, pelo pensamento vigente cheio de preconceitos como se o que é natural fosse uma aberração. Tudo se banaliza quando se é amado por aquilo que não é, ou o que querem fazer que você seja - e eu nunca fui o que meus pais queriam que eu fosse. No momento desse último pensamento eu parei de flutuar e caí no plano sólido da confortável cama do chalé, imediatamente sensibilizado pela presença dela no ambiente à minha espera. 
    Abri os olhos e senti uma estocada de remorso no peito. Karla estava de pé diante da pequena mesinha de canto, já com os queijos fatiados, taças colocadas em posição e o saca rolha ao lado da garrafa. Fui até a janela e notei que as luzes dos chalés estavam todas apagadas, inclusive às do dono da pousada. Perguntei:

"Eu dormi muito?"

"Não! Quase uma hora. Foi o tempo suficiente para que eu também tirasse um cochilo. Levantei tem uns cinco minutos para arrumar a mesa e preparar nosso tira-gosto. Ahhhh... Uma coisa. Você falava enquanto dormia".

"Falei o que?" - morrendo de medo que alguma frase comprometedora atrapalhasse o final de semana romântico.

"Balbuciava e repetia: "Flores de cerejeira, flores de cerejeira", e sorria sem parar. Aí eu te cutuquei no ombro e perguntei com que estava sonhando, mas você não respondeu e se virou para o lado".  

Continua na próxima postagem...    




Cansado e Velho

Minha história gira em torno de mim mesmo, — uma vida quase nas portas do delírio na mente de muitos —, com o intuito único de conti...