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sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Uma Viagem Romântica 5

     O momento seguinte dessa estória recua no tempo e retorna até uma cena anterior, cerca de 1 mês antes desse passeio.
      Com um pouco mais de uns 2 ou 3 meses que tínhamos nos conhecido no facebook e trocado os números para contato via Whatsapp, eu já estava aflito – tinha me apaixonado pelo jeitinho que ela demonstrava em me entender e teria começado o namoro bem antes, se isso fosse possível.
     Era o começo do outono e acho que esse tempo me marcou bem mais por todas as coisas belas que imaginei que faríamos juntos, pois sempre achei o outono romântico, mágico e colorido.
      Em nossas conversas virtuais demonstrávamos ser tão carentes e a beleza da natureza que cada um relatava separadamente ao outro sempre trazia brilho aos olhos, quando imaginávamos os passeios que um dia faríamos juntos. E, por isso, talvez tenhamos escolhido, até então, a forma errada de atravessar a vida buscando avidamente tábuas de salvação afetiva na via virtual. O afeto tem como preço o apego e a presença física. Isso é inquestionável e fatal. Há momentos em que alguns sonham com outra espécie de relação; um tipo de ternura livre e leve, sem comprometimento total. Mas todos sabem que essas não são as premissas de uma relação verdadeira. Desta forma, alguém sempre acaba prisioneiro de um sonho impossível ou de uma realidade injusta. No fundo, nunca somos livres para ser o que somos se não estamos prontos para o desafio.


    Estávamos no shopping Santa Cruz em São Paulo; esse foi o nosso primeiro encontro. Era uma fase que eu acreditava ser possível esquecê-la se começasse me interessar por outra pessoa - já que ela dava toda demonstração que temia um compromisso naquela altura do campeonato.
    Ainda não tinha encontrado a receita certa de como limpá-la de vez do meu pensamento, por isso inventava algumas realidades forçadas durante os meses que conversamos via Whatsapp e discursava veementemente, um discurso enfático de orgulho ferido por ela recusar todos os convites de encontro que eu sugeria. Fazia com único intuito de exorcizar por completo todos os meus medos e fragilidades – ou, quem sabe, a insegurança de perdê-la quando ela considerasse a nossa relação muito previsível.  
   Porém, cada vez que a conversa terminava esquisita, logo no dia seguinte recomeçava numa boa e com a esperança de finalmente nos conhecermos pessoalmente.
    A cena a seguir demonstra toda a inquietação que se revela nessa tentativa de diálogo na praça de alimentação do shopping.
      Depois de uns quinze minutos de conversa boba a coisa começou ficar tensa:
   - Sabe de uma coisa Karla? É muito difícil me decidir como começar esse assunto. Mas é algo que me incomoda há tempos...
  - Se incomoda, então diga de uma vez.
  - Bem... Estive lendo um livro que tinha a seguinte frase: “As famílias mais felizes são as que se conhecem mal”. Pensei imediatamente na sua situação.
   - Na minha situação? – olhar de indignação e surpresa.
   - Então... Você e eu já sabemos o tanto de verdade que existe por trás desta afirmação. Várias e várias vezes você me falou no Whatsapp da sua falta de intimidade com os outros da sua família, praticamente todos os dias esse tipo de assunto surgia nos nossos papos noturnos.
  - Tá... E daí?
  - Estou querendo dizer que intimidade não tem a ver com proximidade ou consideração. Intimidade é outra coisa, entende?
  - Não! Ainda não estou entendendo o porquê deste assunto.
  - Intimidade é esse elo que criamos entre nós dois. E você sempre fugiu de mim por achar que já foi longe demais, ou tudo que me falou representaria um perigo.
  - Hum.. E?
 - Certa vez você me disse que tinha pânico de compromisso, lembra disso?
 - Sim, claro que me lembro, ainda não estou louca.
 - Você me contou que já teve namoros longos e a sensação que sentia com o passar dos anos era de pânico. Que vivia dia e noite com dores de cabeça de tanto pensar como seria constituir família – que, na sua visão, ter filhos, educá-los e orientá-los para a vida era o ponto máximo a que uma mulher poderia chegar – e com o passar do tempo se tornaria escrava de marido e filhos, depois engordaria e viraria bruxa.
 - Tá. E daí? Ainda penso assim. Por que está voltando com isso? Agora não é o momento...
 - É que eu queria me aprofundar um pouco mais nesse assunto porque, como você mesma diz, eu sou chato. Olha só: imagino que talvez você culpe o seu pai por ter imposto tanto medo em sua infância. Acho que agindo assim ele provocou em você um nível elevado de insegurança – o que a impede de ter coragem para se unir definitivamente a alguém. Também acho que, por ser o casamento dos seus pais algo tão sólido e duradouro, se tornou uma missão quase impossível de ser alcançada por você.
 - E o que você tem com isso? Agora resolveu cuidar da vida dos meus pais? O problema não é e nunca será meu pai. O problema é minha mãe!
   - Não seja grossa. Não acredito que sua mãe crie problemas. Veja bem: você se expôs, revelou suas verdades em nossos papos, então não me culpe por analisar. Faz tempo que estou tentando entender alguns porquês. Já que estou envolvido emocionalmente com você, preciso de respostas. Olha só uma coisa, vou falar bem a verdade: acho que o seu pai sempre levou uma vida egoísta – mascarando a realidade conforme a conveniência dele, e acabou estragando todas as pessoas com quem convive. A simpatia dele nunca foi sincera por ninguém. Acho que esse jeito de ser criou um grande pânico em você - a imagem do casamento perfeito bloqueou a sua vida amorosa para sempre.
   - Não estou gostando... Acho melhor a gente mudar de assunto. Não quero conversar sobre isso. Estou começando a me arrepender de ter aberto tanto minha vida a você. Acho que eu estava louca!
   - Precisamos conversar. Uma relação sem conversa não é relação.
   - Podemos falar de outras coisas? - já com a paciência no limite.
   - Vamos terminar esse assunto e depois a gente fala de outras coisas ou vamos assistir um filme - tentei impor a condição.
   - Quero ir embora. Pode me acompanhar em silêncio até ao estacionamento ou eu vou sozinha?
   - Você até pode ir embora, mas antes vai me ouvir. Olha aqui! Eu acho que desde os 20 anos de idade você deveria ter percebido que esse meio de perfeição no qual você cresceu não existe e nunca existirá. É tudo aparência. O seu pai sempre dependeu da sua mãe para tudo. E mesmo que ele fique dando uma de durão, não admitindo a situação, a sua mãe sempre tomou conta dele e dos negócios dele. Ele não sabe fazer nada sozinho e é um ingrato quando trata a coitada com tanta indiferença. Acho que o entendimento, até meio inconsciente, desta situação começou a ter efeitos danosos na sua compreensão do que é casamento. Você não consegue aceitar que nunca aparecerá alguém perfeito na sua vida ou que o amor não lhe cause um tipo de dependência - embora nunca tenha conhecido alguém que vivesse de outra forma que não fosse de depender emocionalmente de outro alguém. Você luta todo o tempo contra seus próprios desejos e incoerências. É assim que você se mostra a mim, uma mulher capaz de desejar um relacionamento e se envolver até um determinado ponto, mas na hora H rompe o compromisso assumido, alegando qualquer motivo que só para você faz sentido. Este e tantos outros raciocínios que tenho, denotam a sua índole insegura e tão egoísta quanto de seu pai. Você é alguém que nunca sabe o que quer, mas que no discurso se mostra forte e cheia de razões lógicas porque se diz inteligente. Não é assim que se define? Você vive tão perdida em dúvidas que nem se importa do mal que consegue impingir a quem gosta de você. O encanto de uma pessoa está em sua personalidade sólida e em fundamentos dignos. Acho que você não tem nenhuma destas qualidades, pois se tivesse não faria a proposta de namorarmos sem compromisso – só porque um dia que estava de bom humor achou que nos daríamos bem. Quando eu tenho a ilusão que algo interessante pode acontecer e penso em aceitar o desafio, aí você vem e diz que não quer mais porque está em dúvida. Gostaria, de verdade, que parasse com a palhaçada. Fui claro? Você me deixa muito puto com esse comportamento. Eu nunca vou conseguir acreditar numa vírgula do que diz se continuar agindo assim.
     Ela se levantou abruptamente empurrando a cadeira para trás, pegou a bolsa já esbravejando:
    - Cansei de você! Não quero mais! Não mande mais mensagens, não me ligue mais. Vou te bloquear. Não me procure mais! Não apareça nunca mais na minha frente. Tchau.
    Foi embora pisando duro, enquanto eu fiquei olhando lá da mesa sua descida às pressas pela escada rolante.

 Nossa primeira  viagem de bate e volta aconteceu uma semana depois:

     - Dirigir em estrada dá uma fome danada. Tem algum doce aí?  
  - Não tenho nada de comer na bolsa. Serve manteiga de cacau para passar nos lábios? – ela sorriu quando balancei bem devagar a cabeça para frente e para trás fazendo ar de decepção:  
    - Puxa vida, que pena.
    - Você trouxe agasalho, calçado sobressalente e tudo o que pedi?
    - Não sei por que, mas fiquei com a sensação que esqueci alguma coisa. Mais tarde eu lembro o que é.
    - Ainda falta muito? Estou com vontade de fazer xixi.
    - Acho que mais uns 35 ou 40 quilômetros estaremos lá. Ali na frente tem um posto de gasolina com restaurante, vamos parar para ir ao banheiro e aproveitar para matar a fome.
    - Tá bom. Acho melhor assim.
    Parei o carro numa sombra próximo à entrada. Saímos andando abraçadinhos, mas a posição dos braços parecia meio incomoda para ambos.
   - Vamos andar de mãos dadas por que abraçados não acertamos o passo. Parece que a nossa diferença de altura atrapalha um pouco. Eu tenho 1.85m e você deve ter mais ou menos 1.60m, não é?
   Ela deu um meio-sorriso e respondeu com a voz feliz:
   - Vamos dizer que tenho 1.60m de altura – risadinhas tímidas no final.
   - Ah sei lá. Se não tem isso está bem perto. Devem ser as botas com saltos baixos que não ajudam muito. Adoro esse jeito da calça jeans por dentro do cano. Acho que fica muito bem em você. Escolheu certinho como impressionar. Como dizem lá no interior: ornou e deu mais formosura para sua belezura. Falando sério agora: deu, assim, - como vou dizer? - um porte diferente, certa elegância que impõe respeito. Aliás, uma mulher com sua postura nem precisa muito para impor respeito.
  - Já me disseram isso.
  - Disseram o que? Que impõe respeito ou que fica bem de botas?
  - As duas coisas.
  - Sei, sei. Agora sou eu que falo ah tá! – Dei um sorriso amarelo com um “Q” de decepção e ela levou na esportiva. Percebi que quase esboçou um sorriso de canto de boca do meu jeito humorístico de ser.
     Um para direita e o outro para esquerda, nos separamos para ida ao toalete e apontamos um ao outro o lugar do encontro na saída. Depois de alguns minutos estávamos num hall com mesas, poltronas e alguns folhetos anunciado ofertas. Caminhamos um pouco e nos aproximamos do balcão para fazer o pedido, e eu perguntei a ela:
     - O que você quer comer? Aquelas coxinhas parecem deliciosas.
     - Não quero nada.
     - Tem certeza? Não sentiu fome pela viagem?
     - Não. Eu comi alguma coisa antes de sair de casa. Faz assim: escolhe você que eu vou pensar.
     - Tá certo – respondi tomado de algum desânimo porque não gosto de comer sozinho.
    Pedi ao atendente café com leite grande e pão de batata com recheio de requeijão. Voltei o olhar e perguntei:
    - Tem certeza que não quer nada? – ela titubeou um pouco e respondeu que tinha mudado de ideia – o que me animou bastante:
    - Pode pedir igual ao seu - falou com indecisão.
    - Pão de batata com requeijão? – coloquei uma dúvida quanto ao seu gosto ser igual ao meu.
    - Sim. Pode ser.
    - Açúcar ou adoçante?
    - Pode ser aquele adoçante líquido - apontou discretamente para o frasco numa cestinha de palha sobre o balcão. 
    O atendente nos trouxe o pedido e continuamos uma conversa rasa entrecortada pelo olhar curioso ao ambiente com diversidade de pães, pedaços de bolo, salgados, doces e guloseimas. E do lado oposto ao balcão do restaurante uma exposição de largos cadeirões em madeira, redes de balanço e esculturas talhadas em pedaço de tronco de árvore. Chamei sua atenção para um quadro grande com a imagem de um saxofone solitário. Ela falou:
     - O meu pai é músico. Ele toca alguns instrumentos e gosta de saxofone. Vive ensaiando lá no quartinho dos fundos de casa.
    - Sério? Que tipo de música ele toca? Por acaso seria Jazz?
    - Não sei. Já me acostumei tanto a ouvir os ensaios em que ele repete várias vezes o mesmo trecho de música, que nem presto mais atenção no que ele toca. Antes me incomodava, mas agora não mais.
    - Eu gosto de saxofone, mas o rock dos anos 80 abusou um pouco do uso desse instrumento. Eu achava muito xarope os solos de sax nas músicas do Bruce Springsteen, Dire Straits, Tina Turner e Men At Work. Eu não suporto ouvir aquele solinho ridículo de sax na música do filme Dirty Dancing.
    - Ah. Eu assisti esse filme. Gostei muito da cena final que tem a dança. Acho que é justamente a cena com a música que você não gosta.
    - Xiiiii... É essa mesmo, mas gosto é gosto, né? – acabei me sentindo sem graça dando essa bola fora.
    - Não tem problema. Não precisa ficar triste por causa disso. Eu aprendi a ouvir de tudo um pouco. A minha mãe sabe mais sobre música que meu pai. Ela lê partitura.
    - Caracas! E por que você não foi pelo mesmo caminho de aprender música?
    - Eu nunca participava com eles de nada. Demorei a escolher o que queria estudar e acabei optando por farmácia. Logo depois mudei um pouco de rumo e me aprofundei na relação da alimentação com a linguagem do corpo e terapia floral.
    - Uau! Você é muito inteligente. Só gente inteligente estuda essas coisas.
    - Pois é, dizem que sou. A minha família é de gente inteligente – sorriu orgulhosa no final da frase.
     - E você faz o que mesmo? Não entendi muito bem aquela sua conversa pela internet na qual nunca deu muitos detalhes do seu trabalho.
     - Eu trabalho com montagem de equipamento de som e iluminação de palco em festas. Os clientes me contratam para animar festas de casamento ou formatura; alguns aniversários e eventos empresariais pintam na agenda de vez em quando. Também posso atuar como DJ ou MC fazendo a apresentação de pessoal e a seleção de músicas quando necessário.
     - Você tinha me falado apenas que era DJ. Você se formou em que?
     - Na verdade, eu não cheguei a me formar. Parei quase 10 anos com os estudos e depois voltei com um curso de 12 meses chamado módulo extensivo. É um curso para revisão de conteúdo do ensino médio na preparação para fazer vestibular. 
      - Não precisa explicar muito, eu já sei o que é - cortou a minha explicação mostrando conhecimento de causa.
      - Então... Eu estava bem enferrujado e foi muito boa essa reciclagem de conhecimento. Aí comecei com engenharia eletrônica, – fiquei de cabelos em pé e posso dizer que perdi uma porção deles – consegui chegar com muito custo até o quarto semestre, para quase no finalzinho ser obrigado a desistir por cansaço. Não aguentava mais dormir apenas 2 horas por noite. É um curso que suga a gente até o talo. Muito cálculo que necessita foco e raciocínio. Eu estava me tornando um neurótico solitário sem vida social. Logo de cara fiquei completamente doente, desgastado e desanimado com a dificuldade do primeiro ano. Isso atrapalhou todo meu desempenho no decorrer do ano seguinte.
     - Eu imagino. Também cheguei a pensar em desistir um dia - ela falou com certa nostalgia. Mas a frase pareceu ter duplo sentido.
     - Vamos voltar para o carro e seguir o caminho? - apressei.
     - Sim, sim. Vamos.
     Entramos e nos acomodamos no veículo. Peguei um CD de MP3 no porta-luvas e coloquei para tocar. Era a música Brown Eyed Girl de Van Morrison. Ela me olhou com admiração e comentou:
      - Que coincidência, o meu pai sempre ouve essa música.
        Dei um sorriso e mandei o elogio com sugestão:
     - Então ele tem bom gosto. É uma música bem legal. Vamos aproveitar que a estrada está tranquila para fazermos uma brincadeira?
     - Que brincadeira? – ela me olhou totalmente arredia e desconfiada.
     - Quando o velocímetro atingir 70 quilômetros por hora nós levantaremos totalmente os vidros e eu colocarei uma música. Você fechará os olhos e me dirá todas nuances que percebe. Quero que ouça o que considero a essência do Rock na sua mais interessante forma criativa. É o trecho de uma ópera-rock. Topa?
     - Ópera? Mas eu não gosto de ópera.
     - Fica tranquila que é algo bem diferente. Não é uma ópera no estilo tradicional que você conhece. É um trabalho chamado de Ópera-Rock porque conta uma história em ordem cronológica da primeira à última faixa. Aliás, essa música nem é vocalizada, eis aí a grande curiosidade da situação.
      - Fiquei mesmo bem curiosa em saber que história é essa.
      - O nome da obra é Quadrophenia.
      - Nunca ouvi essa palavra. O que significa?
      - O termo está relacionado com loucura. É a mistura de 2 palavras: Quadro (quatro) e phenia (é um trocadilho de grafia errada com schizophrenia). É a história de um jovem que tem 4 personalidades distintas. Ele faz visitas frequentes ao psiquiatra para buscar a solução aos problemas de convivência que tem em casa. Vamos tentar fazer a brincadeira?
     - Sim. Vamos lá. Vejamos no que isso vai dar .
     Quando a velocidade atingiu 70 quilômetros por hora liguei o piloto automático e coloquei a música The Rock do The Who.




    - O que sente nesse comecinho?
    - Ouço o barulho do mar e o som de piano, órgão e bateria bem marcante. Vai se repetindo. Ritmo muito coeso. A guitarra acompanha o teclado. É empolgante e muito legal. Eu diria que é contagiante. Gostei! Agora o ritmo muda entra algo parecido com violino junto com som de guitarra chorando mais as notas de piano em destaque. E prossegue como se fosse uma marcha num lamento orquestrado e diminui ao som das notas de guitarra como se a orquestra anunciasse a chegada de algo grandioso.
   - Continue de olhos fechados e sinta a música passando por seus ouvidos e chegando rápido dentro da cabeça. Sinta profundo. Respire fundo e continue dizendo o que ouve com todas as nuances.
   - Novamente ficou lento de repente e virou um som meio solene, agora sim, é como se anunciasse a chegada de alguém muito importante com o repique de bateria. Tem o teclado martelando uma nota só junto com a guitarra. A bateria vai entrando em ritmo de marcha. Imagino como se estivesse numa cavalgada de desfile militar.
   - Isso! Continue de olhos fechados e diga o que sente depois disso.
   - Espere um pouco. O ritmo mudou de novo. A guitarra é mais forte e parece cantar alegremente. O tom da música se tornou mais eloquente e a orquestração voltou a chorar. 
    - Isso! Magnifico! Você está indo muito bem. Continue sem abrir os olhos.
    - Meu Deus! As batidas da bateria atravessam os meus ouvidos de um lado a outro num vai e vem constante. O som agudo dos pratos soa de lá para cá e quase me assusta. Agora tá tudo junto: guitarra, teclado, bateria e baixo marcando o ritmo. A guitarra chora. E chora mais. A intensidade diminui e fica só o teclado. O teclado repete as mesmas notas até exaustão.
    - Isso, isso. Não saia desta concentração. Continue imaginando. É uma "viagem" o que está fazendo.
     - Bateria, bateria, bateria. Variação. Vários tons. Ritmo valsante. Agora tem um tipo de efeito parecido com alguém falando dentro de uma garrafa, um lamento que é constante. Permanente. Penetra lá no fundo da alma e termina numa explosão e com barulho de água.
  - Muito bem! Meus parabéns! Você foi sensacional. Além de ter bom ouvido é muito detalhista! Caracas... Acho que você escolheu a carreira errada. A música está no sangue da sua família. Deveria ser uma maestrina. Tenho certeza que conquistaria o mundo sendo famosa. Então? Gostou da brincadeira?
  Ela sorriu assim, daquele jeito de alguém que quer dizer sim mas não diz com todas as letras:
  - Gostei. Nunca ninguém tinha me mandado ouvir a música e descrever detalhadamente o que se ouve, ou o sentimento instantâneo que isso provoca. É uma experiência bem interessante. Vou refletir sobre isso depois.
  - Eu, na maioria das vezes, fecho os olhos quando a musicalidade me atrai. Não existe música feia quando a gente entende o sentido da criação ou quando criamos um sentido especial para ela - arrematei o assunto buscando uma frase de efeito.
  - É verdade. Acho você tão engraçado. Você fala coisas muito interessantes que fazem a gente pensar - ficam guardadas e voltam quando menos se espera. Por isso resolvi vir nessa aventura de 1 dia. Acho que também estou gostando de você, do seu jeito.
  - Isso é uma declaração de amor? - risadas e uma pausa - Pode crer que além de pensar no que eu digo, você também lembrará do que estamos fazendo de diferente hoje, nessa festa do churrasco no parque Jayme Ferragut em Vinhedo. Esse tipo de situação deixa recordação; o quanto isso mexe com a gente só saberemos depois, muito tempo depois, talvez anos. Olha só, estamos chegando. Veja lá a placa na estrada indicando a entrada da cidade.

   Voltando para a pousada...


       Puxei a porta com tela de arame anti-insetos. No refeitório três casais de hóspedes nas mesas e o dono da pousada com sua esposa ao fundo contando histórias pitorescas da localidade.
   
      - Bom dia a todos. - Fiz os cumprimentos mais um aceno com a mão e Karla fez o mesmo. As pessoas devolveram a gentileza e continuaram suas conversas.

     Nos dirigimos diretamente ao balcão em forma de L para nos servirmos enquanto os donos da pousada sorriam e diziam: "Fiquem a vontade. Depois do café vou mostrar no mapa os pontos legais para passeio". 
     No balcão estavam estrategicamente colocados o pão de queijo quentinho, bolo de cenoura com cobertura de chocolate, bolo de laranja, pão de forma, torradas, manteiga, geleias de vários sabores em potinhos, frios fatiados, cesta com pão francês, garrafa térmica de café e outra com leite, suco de laranja numa jarra grande e uma infinidade de frutas de todas as cores. Ainda havia à disposição uma máquina vermelha de café expresso de saché, estilo gourmet.

Continua...
     

     

    

      






Cansado e Velho

Minha história gira em torno de mim mesmo, — uma vida quase nas portas do delírio na mente de muitos —, com o intuito único de conti...