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quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Uma Viagem Romântica 4

        Esse é um novo momento. Nem foi necessário pensar muito sobre todas as circunstâncias da situação. Sem dúvida, nós nos tornamos sensíveis e compreensivos. Finalmente não temos grandes muralhas nos separando. Olhando as coisas assim, simploriamente, percebo como me sinto mais feliz e entusiasmado. É verdade que ainda estou um pouco arredio e acabo mantendo uma atmosfera misteriosa e desafiadora, fazendo com que a ansiedade  torne as ações incompletas e pensamentos loucos se movendo por dentro da cabeça. Eles passam feito raio que ilumina a escuridão, com flashes de sensatez imediata e de loucura quase interminável. Só assim acabo trilhando o caminho do improvável.

     Quando lembro do mundo que deixei para trás, me condeno por ter permitido tantas experiências ruins. Porque esse meu mundo era inimaginável na mente de uma pessoa que tivesse alguma lógica no comportamento, mas na minha ilusão ele era perfeito. Durante um longo tempo notei que toda a minha visão se apequenava enquanto o meu mundo se paralisava aos poucos. Tinha medo de coisas boas e pessoas maravilhosas que pudessem se aproximar - todos pareciam inimigos prontos a arrancar o pouco da crença que ainda restava no meu interesse em ser feliz. Em certo sentido, esses momentos constituíam um grande deserto, uma época totalmente desolada de solidão e inércia. Nesse tempo a minha vida se tornara uma grande roda gigante de inconstâncias e rotinas intermináveis. Eu me sentia derrotado. Não era um derrotado comum, era sim um derrotado na pior forma que pode existir - aquele que é tomado pela cegueira das sensações. Tornei-me um cego acomodado dentro de quatro paredes, esperava que a divina providência trouxesse as soluções. Mas não era só ali, dentro das paredes do meu pensamento, que isso acontecia, essa era a visão obstruída que me acompanhava pelo mundo afora. Esse modo de viver sempre foi o meu principal mote, fosse no convívio com as pessoas ou até nas viagens astrais. Era toda a minha força, minha razão e meus conselhos próprios. A minha segurança prevalecia por ser único na atitude e opiniões, mesmo que essas opiniões caminhassem na contra mão do bom senso. Eu gostava de discordar só para argumentar, aparentava seriedade só para impor respeito; ainda que no fundo eu fosse um palhaço divertindo plateias que esperavam a próxima cena hilária. Era natural que me sentisse triste, taciturno, derrotado e desesperado. Na verdade nada me faltava na vida, mas ela estava incompleta, porque meus pensamentos fluíam na direção oposta do bom senso. A minha família, apesar de aparentar união, era uma grande lata de lixo, a casa sempre foi um local de convivência totalmente insípida e cheia de esquivas. Os problemas cotidianos eram diuturnamente os mesmos. Sempre haveria um vazamento na tubulação, um fio para isolar, uma maledicência para tratar, uma novidade perversa para contar ou ouvir. Mas que triste situação era essa? Sempre tudo tão falso e desolado. Tudo o que era para ser contado com empolgação era ouvido com desdém. Tudo o que era feito com cuidado era usado com indiferença. Nada poderia ser planejado a longo ou médio prazo, pois, sempre haveria alguém para desfazer os sonhos com impossibilidades e maus agouros. Era nesse exato momento, com todos esses pensamentos, que eu sentia vontade de chegar e apagar a luz, mas era para que se tornasse definitiva em minha vida. Eu sabia que as privações eram privações da alma e, de quando em quando, me debatia em lamúrias. Acabava me envolvendo em tramas engendradas por um ou outro, o que sempre fazia com que cada um saísse por um tempo de casa para refletir e retornasse depois de alguns dias, ou até meses, como se nada tivesse acontecido. A casa de parentes no interior era o alvo predileto nesses momentos. Havia também as viagens dos pacotes turísticos promocionais ou viagens não programadas a trabalho, geralmente para outro estado. Era nessa situação que mal trocávamos uma palavra quando cada um saía com as malas feitas. Todos precisavam respirar ar fresco, aliviar a poluição que impregnava a alma e maltratava os pensamentos. As minhas crises psicóticas se avolumavam de tempos em tempos. Era justamente quando eu me tornava um recluso. Não queria falar, nem tampouco ver qualquer pessoa. O meu mundo era o do pensamento. E o meu pensamento era a única forma de colocar em dia as minhas esperanças de cura emocional. Qualquer inquietação que eu pudesse ter ficaria restrita ao meu ambiente exclusivo, que estava cheio de perseguições e traições elaboradas pela mente. Até confessaria que seria capaz de fazer coisas insuspeitas, - sei que tenho grande imaginação - e definiria a mim mesmo como alguém prático e meramente maluco.
      Minhas mãos estão pousadas sobre a mesa de canto no momento em que Karla olha em meus olhos por um instante. As mãos parecem trêmulas e inchadas; os dedos disformes e a palma da mão suada. O movimento é lento, tão lento que se assemelha a uma barra de ferro sendo movimentada por um guindaste. Ficamos um pouco sem jeito e levamos algum tempo para entrosar a conversa. Nesse momento imagino: “Se ela tivesse algum juízo, jamais teria me convidado para um fim de semana numa pousada”. O pensamento logo passa e mudo de opinião sobre ela. Penso noutra coisa: “Ela aparenta ser uma pessoa simples e honesta. Parece não estar presa à futilidades e caprichos. Isso é muito bom para mim”. Então prefiro ficar com esse segundo pensamento.

     Em poucos segundos já estamos chocando as taças de vinho e dando vivas ao amor. Vamos devagar petiscando queijos Brie, Camembert, Gouda e gorgonzola, acompanhados de fatias de salame. Olhos nos olhos de um jeito bem sensual. Engrenamos a conversar sobre variados assuntos ao mesmo tempo, era como se fosse uma estratégia para fugir do verdadeiro motivo da nossa presença aqui. Por muitos minutos a conversa é calma e natural, na qual nenhum de nós sente qualquer tipo de embaraço. Eu demonstro ouvir atentamente o que ela diz e, quando chega a minha vez de falar, ela faz o mesmo. Já se foram quase trinta minutos nesse tipo de flerte disfarçado por queijos e vinho. Com o avançar da madrugada começa entrar um vento frio pela janela. Dou dois passos num pulo só, encosto as duas partes da janela e puxo a cortina para o ambiente ficar um pouco mais aconchegante. Entre nós surge uma aura de tranquilidade e nos sentimos calmos e prontos para nova iniciativa. No retorno do fechamento da janela dou-lhe de surpresa um beijo quente e profundo. Seguro seu rosto com uma das mãos e com a outra acaricio seus cabelos. Nesse instante sinto a sua cabeça pender um pouco para trás e o corpo tremer de desejo. Os olhos se fecham calmamente enquanto suas mãos rolam por trás da minha nuca me prendendo por um tempo. Tudo corre alegremente numa atmosfera que vai ficando impregnada de tesão.
  Desse momento em diante minha personalidade muda junto com os pensamentos. Toda a perversidade cai de joelhos com minhas intenções. Eis que surge o disparo do gatilho numa roleta russa. O cérebro pode estourar e nem o estampido se ouvirá. Mas ao ouvir o ruído seco saberei que estou a salvo mais uma vez. O gatilho automático está sendo disparado na sequência programada. Eu desejo ardentemente não ouvir o som. Novamente estarei bancando o palhaço da sociedade quando todos chorarem e rirem por dentro. No momento oportuno todo mundo dirá, quase em uníssono , como me tornei uma celebridade no momento mais feliz da vida. Alguém sentiria orgulho de algo que eu fiz, mas ninguém saberia ao certo o que foi. O que entendo de tudo isso é que na vida sempre haverá um grande surpresa reservada para alguém. Novamente sinto que vou cair de desejos ao imaginar o corpo de Karla quase nu diante de mim. Fecho os olhos. Estou com a taça em uma das mãos admirando o que está diante de mim: seus seios pequenos e firmes, calcinha de algodão estampado e com lacinho na frente, olhar erótico e convidativo, boca sussurrando uma doce melodia até que os movimentos dos corpos façam as paredes tremerem. O pensamento muda rapidamente do prazer para o trágico: o sangue escorrendo pelas paredes, sombras fazendo contornos no teto. É a energia movendo o pensamento, agredindo a carne e transcendendo a luxúria da imaginação. O destino me enganou tantas vezes, mas agora seria muito injusto não ser real, pelo menos nessa imaginação da cena que poderia ser perfeita se não fosse ilusória. Ainda estou vivo e respirando. Sou incapaz de um único movimento que não seja o da entrega. Agora há a lembrança do meu passado enquanto caminho sobre corpos mortos de desconhecidos, piso um a um como se fossem apenas entulhos empilhados em montes. Para onde foram os assassinos? Onde estão os salvadores e os carregadores de corpos? Alguém ajude com isso. Eles fedem, vertem líquidos que parecem ácidos purulentos, cadaverina pura. Os olhos de alguns parecem esbugalhados e de outros fora das órbitas. Seres de boca aberta gritam sem parar por misericórdia em busca da cura de suas feridas abertas. O gatilho automático dispara mais uma vez. O revolver continua apontado contra a minha cabeça na mesma velha roda gigante de sobe e desce. “Vida de merda!” “Que Jesus Cristo me salve!” Tenho a leve sensação que vou adormecer aqui enquanto ela conta histórias dos seus anos de alegria quase esquecidos. Estou em estado putrefato e com um fio de sangue que desce do canto de cada olho em cada frase que eu ouço. Todos os corpos foram removidos, agora piso em flores e arbustos, vegetação rasteira com as cores do arco-íris. Não demonstro qualquer emoção nessa cena quando ela novamente muda de assunto. Por quê haveria de ter alguma alegria ou arrependimento? Continuo esperando a próxima imagem qual o fanático que reza de joelhos diante da santa. Agora todos os músculos do meu corpo estão sob controle, mesmo que eu caía com um tiro na cabeça de novo, saberei como levantar. Só eu conheço a significação de cada movimento ou da inércia do pensamento. Sei que sua história alegre parece um tanto horripilante, o que mais lamento foi por ela ter quase morrido assim de uma forma tão obscena e trágica no final. Ela também acabou de me matar, e depois de morto eu sorrio e vejo o quanto seria interessante levar a farsa adiante - como seria confortante continuar desempenhando o papel que me foi oferecido pelo destino. Novamente está tudo na mais perfeita ordem, a nossa ordem, mesmo que eu saiba que de uma forma muito misteriosa, a presença de Karla afete a minha vida. No entanto, está tudo saindo conforme o combinado com toda sutileza e complexidade nos atos. Isso é divino! Outros objetivos estão em vias de serem alcançados. Cresce dentro de mim uma incerteza, a impressão de que não posso cometer um único deslize. Isso causa uma certa angustia, porque nunca sei o quanto desconcertante poderia ficar a situação, caso ela não se sentisse confortável. O simples pensamento de um fim de semana frustrado me aterroriza profundamente.
Reparo que meus olhares não causam qualquer efeito em sua postura. E ela conversa mais: 
- Gosto tanto do seu sorriso. Por quê não sorri mais vezes? Você fica tão bonito com a expressão de alegria estampada no rosto.
- Isso importa muito pra você?
- Claro que importa. Adoro ver você feliz. Você sonhou comigo agora há pouco e não quis dizer, não é mesmo? Seja sincero, diga que sonhou.
- Olha KK. Não sonhei. Os sonhos não têm grande importância para mim. Exceto quando sonho a mesma coisa por noites seguidas. Aí sim tomo como um aviso. Fora isso, sonhos avulsos nada querem dizer.

   Diante dessa afirmação um tanto fria ela acabou ficando sem saber o que dizer. Veio um minuto de silencio e excitação.

  Ela meneou a cabeça e virou de um gole único meia taça de vinho. Enquanto observava comecei a pensar nos fatos que nos uniram. Seria a vontade de procurarmos prazer e companhia, ou apenas algo misterioso que transcende o conhecimento dos seres mortais? Nesse momento nada pareceu claro o suficiente para ter certeza se tudo continuaria acontecendo dentro do esperado, ou não. Ao olhar de relance para ela, percebo que seus pensamentos são insondáveis. Apenas aguardo o momento em que nossos corpos serão ligados novamente tornando-se um. Esse um emanará energia vital para o universo em movimentos harmoniosos desafiando as leis físicas e espirituais. Então, logo em seguida, tombaremos num poço sem fundo feito um abismo de delírios e paixão tão ardente quanto as chamas do inferno. E tudo, em suma, será sentido como um ato integral, completo e confiante. O tempo não mais  como marcador de limite para o prazer selvagem e  visceral. Numa linguagem clara e lúcida, mesmo sendo dos sinais instintivos dos corpos, estamos novamente nos encaminhando para o ritual de entrega. É o velho ritual que sela o encontro da aura celestial com o corpo físico. É o terno momento da troca de energia que emana das raízes mais profundas do desejo de querer. Agora ouço mais de cem vozes falando de uma só vez na minha cabeça, são as vozes de Karla em camadas com várias afinações. 
  Há uma tristeza estampada em seu olhar, uma lágrima escorre e pinga dentro da taça. Ela tenta disfarçar virando-se para o outro lado. Assim permanece em silêncio. Eu nada pergunto e a pego pelos braços deitando-a na cama, fico ao seu lado abraçando-a carinhosamente em forma de conchinha. Permanecemos assim até que ambos caíam no sono. 
A manhã ensolarada finalmente chegou.Despertamos com o som dos passarinhos cantando no quintal. Levantamos preguiçosamente, nos vestimos, lavamos o rosto e escovamos os dentes. Em seguida caminhamos de mãos dadas até o refeitório para o café da manhã. Vamos vagarosamente observando os outros chalés abertos. E logo vem o comentário sobre o lindo céu estrelado que admiramos na noite que passou.


Continua...










Cansado e Velho

Minha história gira em torno de mim mesmo, — uma vida quase nas portas do delírio na mente de muitos —, com o intuito único de conti...