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segunda-feira, 2 de março de 2020

Uma Viagem Romântica 14

     Ela reduziu a velocidade do passo à medida que se aproximava da saída, para a de uma pessoa andando normalmente até que ficássemos lado a lado novamente.

—  Vê ou ouve alguma coisa? — pergunta Karla. — Qualquer coisa.
— Praticamente nada - respondo. Ouvi um ruído esquisito, mas era muito longe. Não identifiquei a direção. Talvez seja o vento.
— Na certa é o vento nas rochas -  ela responde meio ressabiada.
— Ahan, pode ser... Veja, lá está a guarita do guarda. Parece que está sem iluminação. Vamos olhar se tem alguém.
— Quero ir embora logo, não estou aguentando meus pés... Preciso tomar um banho - Karla impaciente, nem dá muito ouvidos ao pedido.
— Nós já estamos indo, temos que passar ao lado da guarita para acessar o portão. Não vá tropeçar nas pedras salientes fincadas no chão, pode piorar a dor no dedinho.
— Estou bem — ela disse, e fechou os olhos por um segundo sentindo uma lufada de vento no rosto. 
— Nossa Karla!!! Venha ver como está tudo destruído! - Vou iluminar melhor com a lanterna do celular. A porta está no chão, todos os vidros quebrados e o forro do teto caindo. Caracas, que chão imundo, que cheiro horrível!!! Parece que ninguém entra aqui há muito tempo. Aonde foi o guarda? Onde ele fica para se abrigar? Eu não me lembro de ter visto a guarita nesse estado quando chegamos ao parque. Você consegue se lembrar se era assim? 
— Não. Eu nem olhei para esse lado na chegada. Tinha muita gente passando, eu tinha que desviar das pessoas e ao mesmo tempo tomar cuidado com as pontas de pedregulhos no chão - Karla se aproxima, mais impaciente que antes.

  Ela recua dois passos, o bastante para lançar um olhar altivo com um menear de cabeça... Julguei uma espécie de ressentimento e espanto na atitude.

— Desculpe — disse ela. — Eu só estava tentando entender...
— Ah, é? 

 Abro a boca para dizer alguma coisa engraçada, se tivesse sorte, alguma coisa que a fizesse rir (tinha um belo sorriso), que então quebraria o momento tenso da falta de entendimento da situação. Mas eu mesmo acabei me surpreendendo com o que vi.

— Olha, ei, o que é aquilo? — perguntei, falando mais comigo mesmo que com ela.
— O que é o quê? — Ela virou a cabeça para olhar aquele enorme portão do parque, estava totalmente fechado.
— O guarda deve ter ido embora e passou uma corrente grossa no portão. Vamos olhar se tem cadeado. 
 — Ronnie, o que faremos se estiver trancado? Putz... Que merda!!! Olha o tamanho do cadeado virado para fora. Não teremos como sair antes do parque abrir pela manhã. Eu estou começando a sentir um pouco de frio, sem contar que aqui está um breu total. As baterias dos nossos celulares não aguentarão muito tempo se ficarmos usando as lanternas. O que faremos para nos aquecer e nos proteger do vento? Dentro da guarita é impossível com aquele cheiro... - Karla permanece meio indignada com a situação. 
 — Não sei... Você não havia dito que conhecia um outro caminho para sairmos do parque? - questiono.
 — Sim, Ronnie. Mas, faz muito tempo que fui até lá. Nós teremos de subir até a metade da escadaria para seguir uma trilha que sobe e desce o contorno da montanha. Ela é longa e escorregadia. Se acaso formos arriscar a caminhada e dermos o azar de  começar chover teremos de voltar para cá, porque lá desbarranca. Deixa eu pensar... Nas frestas dos muros laterais não dá para passar porque as colunas verticais têm pequenos vãos, eu acho que não passa nem um filhote de gato. O pior é que esse cercado de concreto cobre o toda a extensão do parque, exceto o trecho alternativo lá de cima. Quando sairmos por lá teremos mais meia hora de caminhada, fica bem longe da rua em que deixamos o carro. Vamos sentar um pouco e conversar para raciocinar melhor. Preciso descansar, no caso se resolvermos subir novamente - Karla parece exaurida pelo esforço do dia.
— Então, Karla... Não vai mesmo me contar como e quando conheceu esse outro caminho?
— Falei que depois eu conto; em outro dia. Vamos primeiro nos focar em como sair daqui.
— Sempre fugindo... Um detalhe: você reparou que a corrente e o cadeado estão muito enferrujados?
— Não. Eu nem notei. Estou tão nervosa que nem fiquei olhando detalhes. Vamos lá olhar novamente.
— Karla, por favor, dirija o foco do seu celular junto ao meu. Caramba!!! veja como está tudo enferrujado, parece que a corrente até grudou no ferro do portão, formando uma liga... E... observando melhor... O próprio portão tem vários caminhos de ferrugem de cima até embaixo. Talvez se tentássemos puxar por baixo ele cedesse ou quebrasse o suficiente para abrir um buraco para passarmos. O que acha? 
 — Acho que não deveríamos fazer isso porque podemos nos cortar e não teríamos como estancar o sangue. É perigoso pegar tétano. Muito arriscado...
— Tá... Então o que a mocinha sugere para sairmos daqui? Só tem a opção de rodear o morro pelo alto? -
— Espera... Já falei que preciso de um tempinho para pensar. Vamos sentar em cima daquela casinha que parece um depósito de lixo, assim ficamos protegidos dos bichos rasteiros. Sobe lá e me puxa, mas puxa devagar porque tenho probleminha na lombar e no ombro esquerdo que me incomodam bastante quando fico nervosa. O nervosismo me faz sentir dor e ao mesmo tempo falo muito para distrair a dor. Se você achar que comecei a matraquear coisa sem sentido, dá um toque.  
— Pronto! Sã e salva no alto. Ajeite-se e pense, ou fale se isso for acalmá-la. Podemos conversar sobre o quê? - deixando a sugestão por conta dela.

— Putz... Que situação! Então... Eu gosto de psicologia. Sou fascinada pelo entendimento do ser humano. Inclusive a psicologia social que cursei em Guarulhos. Algo curioso aconteceu quando certa vez fui numa palestra de um filósofo famoso, um careca que às vezes aparece em programas de TV, fiquei bastante decepcionada. Achei o tema que ele abordou bem cansativo. Não via a hora de terminar. Eu fui pensando que adoraria.
— Ah... Que legal e que ruim. Legal pelo fato de ser psicologia e ruim por você não ter gostado.
— Os palestrantes parecem ter uma cartilha decorada. Eles gostam muito de falar em felicidade e infelicidade. Se você abrir a internet tem milhares deles falando sobre o tema - completou Karla.
— É verdade. Mas eu já percebi que nenhum trata o assunto de outro jeito que não seja a forma filosófica. Quando entra muita filosofia antiga fica chato - dando corda a ela para que continuasse falando.
— Isso mesmo, Ronnie. Na minha visão a felicidade é um tema do presente. Algo moderno. Aquele povo grego, que eu aprendi a respeitar lendo os livros de escola lá na faculdade em Guarulhos, pensavam outra coisa do que é felicidade para nós. Como posso explicar isso de forma simples? Aquilo que chamamos felicidade, para eles era harmonia e prosperidade. Pois, na verdade, apenas nós, com nossos olhos e a realidade que vivemos, podemos olhar para o mundo e ver um caos, e realmente está um caos, ainda assim podemos nos recolher à vida privada e dizer erroneamente que somos felizes - Karla tentando esclarecer.

— Será mesmo que eu sou feliz? Será que você, Karla, é feliz? É perfeitamente comum sentir-se feliz ao desfrutar de uma situação íntima e afirmar com todas as letras: "Eu comigo mesmo sou feliz!". Bem complexo isso. Nem todas as pessoas conseguem ter esse tipo de entendimento da própria realidade. Talvez apenas uma pessoa como você, que estudou psicologia e um pouco de filosofia consiga - continuo acariciando o ego de Karla.

— Veja bem: não precisa dizer que o entendimento é só para gente estudada, pois não é. A felicidade a qual me referi não é propriamente a felicidade cristã. Embora a felicidade cristã, ainda assim, seja uma felicidade voltada da paz. A verdade é que é feliz quem está com Deus - Karla diz secamente.
—  Deus? E o que é Deus para você? - pergunto, já imaginando uma resposta genérica.
— Acho que é a sensação de quando a pessoa não precisa mais de nada. Quando cessam os desejos e ela encontra paz. Aí está com Deus, aí está com a felicidade. Hoje em dia muitos não pensam assim - nem com o parâmetro cristão, nem com o parâmetro alternativo da felicidade criada pela própria ação de uma pessoa. Quando se fala em felicidade, fala-se em vida íntima, vida a dois, vida familiar ou mesmo vida a um. Eu agora poderia estar curtindo eu mesma e ser feliz. Entende? Quando eu curto eu mesma eu me sinto pronta para me dedicar e curtir você também. Então, este é outro patamar da felicidade que se abre para nós. Ele é moderno, contemporâneo, é a felicidade que precisa ser mostrada, e eu adoro mostrar - Karla tenta fechar o raciocínio, mas não permito e dou corda.        
 —  Para mim ou para os outros? - Pergunto, tentando perceber na escuridão algum brilho em seus olhos.
 — Vamos lá... Por exemplo: para que eu seja uma mulher completamente feliz eu preciso dizer para você e para os outros que eu estou feliz. Eu posso não morar na cidade dos meus sonhos, nem ter ao meu lado, fisicamente, as pessoas que eu gostaria, mas tenho o Facebook, Instagram e o Twiteer ao meu alcance 24 horas por dia.
— É... Isso satisfaz seu ego o suficiente para trazer felicidade? - Minha curiosidade cresce ao perceber que ela dedica tanto tempo à internet.
— Nem vem Ronnie... Não adianta me criticar porque posto coisas no Facebook e Instagram. Quem critica não entende os prazeres das coisas mais simples da vida. Você, como homem inteligente, deveria entender que a evolução do mundo mudou o modo como é dada e recebida a felicidade. Hoje existe o Facebook e esses outros meios, que são tão autênticos e indispensáveis ao que necessitamos para receber e dar atenção, são grandes alternativas muito práticas. Muitos suicídios deixaram de acontecer depois do advento da internet e redes de relacionamento - Karla não se cansa de sempre tentar me convencer pelo argumento lógico.
— Sério? Nunca ouvi falar dessa estatística. Mas já ouvi por aí que é verdade que as pessoas que postam no Facebook não são felizes - tento desafiá-la.
É mentira. As pessoas têm os seus momentos felizes e querem repartir com os amigos. Eu faço isso sempre que posso, mesmo com gente que nunca encontrei pessoalmente. Mas quem foi que disse que amigos só de Facebook não prestam? Quantos e quantos de nós não convive com pessoas que jamais vão encontrar fisicamente? Quantas e quantas pessoas no passado, não muito distante, amaram através de cartas e se sentiam felizes? - Karla acha que convenceu novamente com argumento lógico.
Nessa questão das cartas de papel, eu acredito mesmo que muitas pessoas namoraram por anos sem nunca estarem juntas, mas isso foi lá no século passado. Aí eu lhe dou razão quando fala da evolução da comunicação pessoal através da tecnologia - Vou jogando de forma neutra para que não se irrite.
— Tá certo, Ronnie. É essa a ideia. Quando eu ponho no Facebook uma imagem da minha intimidade feliz, eu estou muitas vezes querendo o quê? Quero que meus amigos compartilhem e aprendam comigo o modo de ser feliz. É claro que eu seria muito mais feliz se eu vivesse numa cidade ou num país que não estivesse à beira do caos todos os dias. É claro que eu seria muito mais feliz se eu pudesse encontrar mais pessoas encontrando a paz com menos voracidade dos seus desejos mais sórdidos. Mas isso não quer dizer que eu não entenda a felicidade do tempo no qual eu vivo, que é a felicidade da intimidade. Ou, que, eu não entenda a felicidade que aparece no Facebook da minha amiga que está feliz. Ela viveu algo bom e demonstra aos outros o seu momento de harmonia. Ser feliz é alguma coisa que depende do momento histórico da harmonia e da crença de cada um, ou da imagem que recebemos ou enviamos através da telinha - Karla alonga o assunto para demonstrar razão.
— Você acredita que a sua felicidade é maior ou menor que a dos outros? - Dou uma leve cutucadinha
— De repente achar que a própria felicidade é menor que a dos outros é não entender a relatividade do Facebook ou da internet e não entender a si mesmo. Quantas quantas pessoas, que eu nunca vi, se tornaram meus amigos no virtual e ficam felizes quando eu estou feliz e eu fico feliz quando elas estão felizes? - Karla não perde a linha em seu raciocínio.
— Eu imagino que sejam muitas... Mulher bonita sempre tem muitos amigos, principalmente homens interessados em "algo mais". Suas fotos nos posts são muito chamativas. Principalmente aquelas da praia.
— Não seja bobo. Postar fotos é um tipo de relação dos tempos modernos que faz bem para muita gente. Eu não vivo só de internet. Também procuro pequenas coisas que me fazem feliz. Posso ler um livro, beijar o namorado e sair com ele para comer um pastel de feira numa pastelaria que anuncia seus pastéis como sendo de feira, ou tomar um café no shopping junto com uma amiga. Essas ações significam o agradecimento à vida. Saber que eu tenho energia para tentar melhorar a minha vida e a de todos que estão próximos de mim. Isso não é uma felicidade imensa? Já sei... Aí vem as críticas, né? - Já que ela levantou os escudos eu me defendo e a deixo livre para prosseguir na mesma retórica.
— Como assim? Que críticas? Eu estou adorando seu raciocínio. Não tenho crítica alguma - dou o sinal verde para que se empolgue mais.
— Então... Mesmo assim eu ainda fico um pouco arredia. Aprendi que a gente não pode se expor demais. Tem que se limitar a expor a alegria e o prazer de viver porque sempre chegam as cobranças que amanhã a pessoa terá de ter o mesmo bom humor e a mesma energia de hoje, especialmente para fazer os outros felizes. Só que talvez eu posso não ter. Eu acredito que a minha felicidade íntima só será completa a hora que eu perceber que os outros possuem condições materiais de liberdade e igualdade para serem felizes, - na maioria dos momentos em suas vidas - sem depender de ninguém - Karla pareceu um pouco mais emocional agora.
— Você bem sabe que isso é meio que uma utopia. O nosso mundo é baseado numa sociedade patriarcal rígida, apesar de a todo momento demonstrar o contrário. Por isso acho difícil uma felicidade em massa - eu jogo a isca para que ela volte ao pensamento racional.
— Eu fui ensinada que a masculinidade patriarcal cria homens com a expectativa de que a sociedade a eles permitam o papel de únicos protetores e provedores de suas famílias para o bem da felicidade do lar.
— Isso mesmo - vou dando corda.
— Em tempos de dificuldade econômica, como acontece atualmente, os homens, já preocupados com a percepção de perda do seu status provedor e másculo, podem facilmente entrar em pânico por conta da demagogia dirigida contra os que são considerados incapazes de cumprir o papel determinado pela sociedade. Aí, entram em parafuso, distorcem as fontes da tal ansiedade com agressão verbal, ou até física, a quem estiver ao seu alcance. A família a qual pertence cada um desses corre o risco da ameaça existencial por parte daqueles que rejeitam sua estrutura e suas condições de precariedade comportamental. Passa a ser uma família mal-vista até pelos vizinhos - parece que agora ela foi fundo na lógica da própria realidade.
— Ahhh... você está falando não apenas de alguém que caiu com o padrão de vida e se tornou infeliz e depressivo, mas um tipo de pai fascista. Um pai fascista pode ser até mesmo uma ameaça potencial de agressão sexual aos parentes ou filhas. Ninguém merece isso - prossigo dando novos argumentos a ela.
— A sociedade esconde, mas isso é bem comum, principalmente fora das grandes cidades. A ansiedade sexual enfraquece a igualdade, diminui a hierarquia familiar e anula o respeito - há um certo ressentimento com alguma coisa do passado na frase dela.
— Isso não parece real. Acho que situações assim são exceções infelizes - sigo soltando a corda.
É... Talvez eu esteja sendo exagerada. Mas eu penso que quando é exigida às mulheres cumprir o papel dos homens provedores de suas famílias, acentuam-se os sentimentos de ansiedade diante da perda da masculinidade patriarcal. E os homens geralmente fraquejam, ficam agressivos e acabam se envolvendo com bebida, jogos, vícios e até putaria - será que ela está falando da própria família ou seria no contexto geral?
— De onde você tira essas ideias? Não acha muito radical esse tipo de generalização a respeito do sexo masculino? - cutuco a onça com vara curta.
— Uhhhh.... Foi a sociedade me fez assim. Essa sociedade, no aspecto sexual, tem uma forma poderosa de apresentar a liberdade e a igualdade entre homens e mulheres como ameaças fundamentais, sem explicitamente rejeitada-las. É sútil. Há uma presença marcante da ansiedade sexual que a maioria das pessoas disfarça; talvez seja o sinal mais evidente dessa erosão liberal - não captei a mensagem dela. Teria sido uma indireta?
— Agora você falou difícil. Meu tico e o teco não estão conseguindo acompanhar o que seria isso que você chama de "erosão liberal" - fiz bico e cara de Songo-mongo 
— Então, Ronnie. Presta atenção. Você citou o tal pai fascista que deseja a todo custo impor suas vontades sem que ninguém diga não. Certo? Entenda que a questão sexual não é e nunca será secundária para um fascista. Ela está andando junto com suas fraquezas de personalidade e com o desvio de caráter. A questão da afirmação sexual sempre será um dos pilares da mentalidade desse pai fascista. Porque, essa estrutura hierárquica patriarcal, no qual se tem um homem forte no topo, sente-se ameaçada por uma política igualitária, na qual mulheres ocupam espaços idênticos e oportunidades semelhantes, entendeu agora?
- Mais ou menos. Você acha que é mesmo importante ressaltar a tensão sexual dessa cultura dos hábitos e costumes, que recebemos como justificativa para todos os erros de criação de meninos e meninas? - tento demonstrar alguma inteligência na pergunta.
— Sim eu acho. O pai tirano explora ao máximo essa perda dos valores masculinos, como fator essencial da sua política de valores exacerbados, para fazer o que lhe dá na telha - ela vira o rosto para outro lado durante a frase.
— Mas a maioria dos lares do nosso país são lares cristãos. Isso não alivia um pouco essa tensão do pai tirano? - continuo tentando demonstrar clareza de ideias.
— Os cristãos, em todas as suas tendências, parecem defender a família. Acontece que dentro desse conjunto de valores religiosos há a política destrutiva. Seja ela do meio ambiental, por exemplo, ou da tal política econômica que privilegia a elite ferrando os mais pobres. Também tem a política criminal que sempre irá afetar os mais pobres, os que não têm dinheiro para pagar bons advogados. Esses são os que nasceram para a servidão. Em nome da impunidade e da ganância dos ricos, jamais conseguirão escapar da exploração. Nossa sociedade está baseada em um conjunto de valores patriarcais muito bem ditados, que engloba também os de costumes no dia a dia, os religiosos e os da força de trabalho; sempre ditados por gente bem sucedida economicamente - percebo que ela envereda pelo viés político-social, usando a mesmo argumento que usei em outra conversa.
— Então, sendo assim, não tem jeito de sermos felizes como você falou antes, pois agora você acaba de jogar uma nuvem negra sobre o que parecia uma esperança de melhores dias - vou me fazendo de desentendido.
— Sinto muito se saber disso o deixa frustrado. Por isso eu digo sempre que eles precisam constantemente atacar aquilo que consideram um desvio de comportamento das mulheres: o feminismo - as mulheres finalmente lutando por igualdade de direitos, de condições, de oportunidades e liberdades. Mesmo que eu saiba que muitas mulheres digam que não ligam para esse tipo de discurso, eu entendo que elas foram doutrinas a não ligar. Pensa bem, Ronnie... Existem tantas oportunidades hoje em dia, as quais, tradicionalmente, eram vetadas às mulheres no século 20. É por isso que, para alguns homens, é tão perigoso pensar no mundo no qual se tenha homens e mulheres em todos os espaços. Por que isso viola as estruturas de cima para baixo, a tal estrutura vertical patriarcal. É também por esse motivo que pessoas que pensam e agem assim atacam homossexuais e transgêneros. Nesses, considerados diferentes, existe uma ameaça aos valores que os agressores dizem representar e defender. Na minha opinião a homofobia é uma consequência do machismo incutido na doutrina familiar da maioria das famílias. A doutrina patriarcal - acabei ficando sem argumento diante da bela conclusão dela.
— Vixe... Agora você foi fundo... Não acha melhor decidirmos o que vamos fazer para sair daqui? - impaciente, pois o assunto estava ficando muito intelectualizado.
— Nós vamos já já...Tem outra coisa nessa linha de raciocínio: é também por isso, que a mulher que não tem o direito de trair, que não tem o direito de pular a cerca, está seguindo a norma patriarcal de sua educação recebida desde os primeiros passos. No entanto, o contrário acontece com os homens - senti um tom de revolta nas palavras dela.
— Ahhh tá bom... Agora vai dizer que todos os homens são safados e as mulheres santinhas. Lembre-se do que foi falado de generalizar...
— Não generalizo, mas não é novidade que o homem tem o direito de ter uma segunda, terceira ou quarta esposa, de ter amantes, sair com prostitutas quando está entediado. A mulher não pode fazer isso, a mulher serve ao homem dentro dessa estrutura do que o pai ensinou. Então, chamar uma mulher, que no decorrer da vida teve muitos namorados, de mulher fácil, é criticar alguém que está rompendo com a estrutura patriarcal construída por homens machistas. Quando a mulher, por exemplo, tem autonomia para decidir se ela deseja ficar ou não com um homem, e o mesmo a tenta insultar dizendo que ela não tem o direito de escolha, é esse homem agressivo, esse homem dominador, que tenta se impor através de suas inseguranças e fraquezas interiores, que faz questão de reafirmar a sua sexualidade através da força. Ele exige "seus direitos ao que lhe pertence", através dos antigos costumes impostos pela sociedade na qual nascemos e vivemos, que é baseada na supremacia masculina e na dominação dos homens sobre os demais, principalmente as mulheres. Isso me cansa bastante quando encontro gente assim. Meu pai é assim - concluiu Karla com algum sentimento nas palavras.
— Se você continuar pensando desse jeito fica complicado ter uma relacionamento estável com alguém, arrumar namorado. Afinal, os homens são assim mesmo, por que foram ensinados por seu pais, que foram ensinados pelos pais deles e assim por diante. A mudança desse padrão é muito difícil para alguns e muitos nem fazem questão de mudar - vou tentando aliviar para o meu lado.
      — Eu sei que a mudança é bem complicada, e às vezes até dolorosa. Eu já fui muito submissa. Nem acredito quando olho para o passado. Fui casada por um período da minha vida. Eu adorava um grude. Não abria mão da pele na pele. Eu gostava muito de ficar me esfregando na pessoa como se fosse uma gata manhosa. O toque sempre foi essencialmente excitante para mim. Eu tinha tanta necessidade do contato físico que o sexo podia ser a qualquer hora, em qualquer lugar, de qualquer jeito e várias vezes ao dia. Quanto mais eu fazia mais eu queria fazer. Depois eu vi que uma relação a dois não pode se basear apenas na atividade sexual constante, ou até meio exagerada. Passei a entender, depois que me separei do meu marido, que deveria dar um tempo para mim mesma e para quem eu estivesse namorando. Hoje não abro mão da minha liberdade de escolha, da minha liberdade de ações, do distanciamento programado. Não quero ver namorado todos os dias - apenas de vez em quando está ótimo. Isso mantém o encanto vivo e o desejo ativo. Com o tempo entendi que quantidade de ato sexual, com a presença permanente no mesmo ambiente, sem dar espaço ao outro de respirar, nunca serão exemplo de relação com qualidade, muito menos de entendimento e de desejo constante. É muito bom sentir saudades e poder matar a saudades com disposição - ela respira fundo, por relembrar o passado e cansada de tanto falar.
        — Ahhhhhh..... Finalmente se revelou... Agora entendi por que demorou tanto para me ligar.... Muito bem! Respeito o seu jeito. Respire fundo três vezes antes de continuar. Espero que jamais me inclua no seu raciocínio de generalizar ações masculinas ou nas opiniões do caráter maligno dos homens, tudo visto e entendido, logicamente, segundo a sua visão.
        — Pode deixar... ela inspira demoradamente e expira o ar frio da noite.
        — Vamos Karla, vamos descer daqui para enfrentar novamente a escadaria? Quero chegar na pousada antes do Sol despontar no horizonte, detesto dormir com claridade nos olhos.
        — Vamos!





Cansado e Velho

Minha história gira em torno de mim mesmo, — uma vida quase nas portas do delírio na mente de muitos —, com o intuito único de conti...