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sábado, 6 de junho de 2020

Dear Miss C Capítulo 10

     Ao lado das barracas montadas nos sentamos numa roda para conversar observando o grande número de pessoas diante do palco assistindo o cover de Raul Seixas. O palco foi montado distante da área de acampamento, mais ou menos uns cento e cinqüenta metros. Comigo estavam Zé Louco, Simone e Tom com mais dois conhecidos que acabaram de chegar de São José do Rio Preto. Enquanto Zé Louco voltava a usar os termos “Meu patrão, Véio e caralho”, Nanda corria para o meio da multidão e se agarrou na beirada do palco, dali não desgrudou até que o cantor lhe desse leves tapinhas nas mãos. A vida passou meio sem rumo nessa roda de conversas soltas, onde se relatava a beleza ou a feiura da vida, ou o caos e a luz dos efeitos visuais dos flashes coloridos iluminando a noite. Eu me sentia fazendo parte do show tanto quanto os malucos que sacudiam a cabeça ou outros que fumavam um baseado no caminho escuro da trilha ecológica. A noite continuava crescendo por partes, numa lógica em que não existia redenção dos pensamentos insanos, mas eles ainda se perpetravam em mim diante das palavras de Zé Louco. Zé era de fato um homem estranho, alguém preparado que entrava por detrás do sentido de cada frase e ia até a própria essência das coisas. De repente ele retirou do bolso interno do colete, uma latinha redonda – semelhante a uma dessas latas de pastilhas de eucalipto. Pegou cuidadosamente com as pontas dos dedos alguns pedaços do que parecia ser de balas Toffee. Entregou uma para cada um, inclusive aqueles novos amigos que chegaram da cidade distante. Recomendou que era sub-lingual e deveríamos deixar dissolver debaixo da língua até que sumisse de vez. Eu, muito curioso, perguntei antes de colocar o “doce” na boca:
- O que é isso? É algum tipo de doce de ervas?
- Não se preocupe. Isso não é doce e nem amargo. É algo que fará a sua mente percorrer caminhos que nunca imaginou.
- Então é um tipo de alucinógeno?
- Meu patrão... Quanta pergunta você faz... Você não confia em mim?
- Confio sim, Zé. Mas me preocupo se for algo que pode me drogar.
- Meu véio; fica tranqüilo! Isso é um composto feito de várias ervas cultivadas por nativos na cordilheira dos Andes. Para eles serve de uso medicinal. Foi o amigo Marito, o peruano, que trouxe numa remessa que encomendei em sua última viagem ao Perú. Você se lembra do Marito?
- Eu me lembro. Nós pouco conversamos naquela época, ele era muito retraído e falava português muto enrolado.
- Meu véio pare de enrolar... Vamos lá! Coloque a balinha embaixo da língua e espere alguns momentos que logo irá entender o significado de tudo. Eu lhe garanto que só fará bem a sua mente. Com a clareza que ela lhe trará conhecera os motivos que fazem uma pessoa enlouquecer de vez ou se curar da loucura, principalmente se tal pessoa estiver com espírito aberto e determinada a aprender o que está oculto nos segredos naturais da mente. Agora não faça mais perguntas, silencie e apenas sinta o mundo ao seu redor como se cada pessoa ou objeto ao redor fosse uma parte do seu ser.
   Coloquei a bala na boca e no mesmo instante ela derreteu como se fosse uma papa. Daí em diante o mundo ficou mais colorido. Pensei comigo se poderia levantar-me ou não. Eu sentia uma forte necessidade de fugir e me esconder, mas, ao mesmo tempo, queria pular e gritar. Se eu estivesse na beira de um abismo pularia para voar. De repente a cena foi se tornando cada vez mais clara enquanto tudo parecia um sonho. Tentei tocar o ombro de Zé Louco, mas o meu braço flutuava em câmera lenta. Apalpei o chão de grama e todas raízes expostas saltavam para dentro do meu corpo, eu me senti parte de cada grão daquele lugar. Eu vi ao longe um rapaz de botas cano alto vindo rapidamente ao meu encontro. Ele usava um chapéu de pirata e um rabo-de-cavalo que balançava de um lado a outro e descia até quase o chão, ele media no mínimo uns cinco metros de altura. O homem carregava um enorme saco de farinha nas costas e gritava algo que eu não conseguia ouvir, rapidamente passou correndo por mim e sumiu na escuridão. A cena na minha mente mudou e eu vi você, minha musa. Você estava destruindo amontoados de papéis; eram os meus escritos. Eu a vi amontoando de qualquer jeito roupas dentro de um caixote de madeira. O olhar mais atento me mostrou que havia uma pilha de caixotes que ia até o teto do seu quarto. Em outro momento tive a sensação de estar girando sobre a grama, e, ao olhar para o lado oposto, vi o seu rosto com olhos febris como se estivesse endoidecendo de vez. Outra vez a cena tornou-se mais clara que antes e não parecia mais alucinação. Você estava no topo de uma escadaria e eu subia pouco a pouco até ao seu encontro. As minhas pernas pareciam elásticas e muito compridas, mas o corpo se movimentava de uma forma lenta e tremula como se as pernas fossem e o tronco e cabeça ficassem. Num impulso pulei da escadaria e vi toda turma abaixo de mim, era como se eu flutuasse e pudesse tocar as nuvens no céu escuro. Admirei o contorno da serra do mar numa sombra e as ondas quebrando na praia deserta. A minha velocidade de ir de lugar a lugar e de pensamento a pensamento era extraordinária enquanto o corpo mal havia se movido um dedo sequer. Eu estava com a nítida sensação que a cabeça virava para frente e para trás totalmente sem controle enquanto, em círculos verticais, a imagem de cada pessoa passava completamente deformada. Tentei fixar o olhar num ponto onde a noite pudesse ser mais serena e vi uma pluma bailando no ar de forma lenta e irregular. Fiquei enjoado com a cena, vomitei tudo o que nunca houvera comido antes. Mas fiquei limpo. Esqueci do enjoo e andei um pouco, ou imaginei que andasse. Estava obcecado com o medo que todas intenções fossem descobertas ou que uma espécie de escuridão pior que da própria noite me envolvesse. Tudo isso deu lugar a uma tristeza. Era como se eu a tivesse encontrado naquela escuridão, minha adorável musa. O local tinha um caráter meio nebuloso e sombrio. Tentei conversar com você num tom racional, usando argumentos coerentes, mas você não respondia. Em seguida você pulou da escadaria e passou direto por mim, passou pelo meu meio como se eu não existisse. Pensei: “Por quê? O que fiz de errado? Você deveria ter ouvido o meu chamado e ficado comigo”. Imaginei que talvez tivesse feito isso porque não gostasse de mim e eu não soubesse ao certo o que lhe perguntar. O meu desejo de tocá-la,  falando um pouco com você, talvez fosse mais forte que a minha razão em acreditar que era tudo alucinação. 
     Um flash de realidade tomou conta do meu pensamento e percebi que Zé louco começava uma pregação e não parava mais de falar. Era como um religioso se dirigindo aos fiéis. Eu me sentia ouvindo a um filósofo, não um filósofo que a gente encontra descrito na literatura, mas um homem que solta as palavras com sabedoria e vive aquilo que a todo tempo descreve. Isso significa que ele demonstrava que não tinha uma teoria de vida, a não ser a própria vontade de que houvesse alguma discórdia de alguém nas verdades reveladas e das exemplificações dessas verdades nas atitudes e sonhos de cada um. Ele falava continuamente sobre si próprio e a sua relação com mundo. Dizia a todos o que parecia mesmo bem verdadeiro dentro de um certo sentido nas descobertas que cada um deve fazer na vida que leva. A sua imagem naquele momento, para qualquer pessoa com o mínimo de inteligência espiritual, era de uma espécie de profeta, alguém que estava fazendo o máximo esforço para que outros vissem a luz como ele via. Todos ali sabiam que bastaria ele abrir a boca, e lá vinha um tipo de sabedoria completamente diferente de tudo. O que até então, alguns imaginavam que já sabiam, mas, no fundo, não sabiam de nada ou daquele jeito exposto. Seria muito fácil dizer que talvez ele fosse um místico capaz de controlar a mente e ao mesmo tempo conservar os pés firmes no chão conversando naturalmente e com um olhar invisível saber tudo que acontecia ao redor. Ou até mesmo dizer coisas tão práticas e objetivas que poderia ganhar uma fortuna com isso, caso fosse ambicioso. Mas ele, apesar de gostar demais em ser o centro das atenções, nunca foi um filho-da-mãe egoísta e o senhor da razão como alguns pensavam. Raras pessoas têm essa habilidade de deixar os outros em transe. Ele conseguiu me levar a esse transe sem que eu soubesse que estava tomando, inconscientemente, uma das mais importantes resoluções da minha vida. Em outras palavras, ele penetrara na minha mente com uma força tão silenciosa e misteriosa, trabalhando o meu "eu" até que eu me sentisse verdadeiramente sozinho, a ponto de construir o meu próprio destino. Nessa conversa espiritual secreta, turbinada por uma inocente balinha de ervas, estava a linguagem divina onde todos fantasmas desapareciam e a mente flutuava em busca de novos valores para a vida.
     Miss C, a verdade é que agora o meu olho se concentra em pontos no tempo onde nunca imaginei que enxergaria. É natural que as pessoas fora daquele meio de convivência rotulassem o comportamento de Zé Louco como estranho. Todavia, não era nada estranho para aqueles que já o conheciam há anos. Nessa roda de pessoas, que a cada momento era completada por mais um que vinha se juntar, ele era ouvido com o maior respeito num tipo de reverência. Fiquei, portanto, surpreendido e orgulhoso comigo mesmo por ter essa estranha criatura me acolhido e colocado ao seu lado direito como uma mão protetora. A minha sensação era de alguém que estivesse sendo despido, ou melhor, ficando totalmente pelado – sem roupas ou calçados – pois, de cada um que se sentava ao seu lado, era muito mais que mera nudez que ele exigia. Tudo era profundamente verdadeiro e muito natural naquela maneira de se aprofundar nas descobertas. Talvez você não entenda que agora falo desse mundo futuro que caiu sobre mim. Desse lugar os acontecimentos nunca foram interrompidos pela noite ou pelo dia, nem pelo ontem, anteontem ou amanhã. Esse é um tempo visto através do olhar que rompeu a parede criada por uma viagem ininterrupta. O meu corpo inteiro precisou tornar-se um enorme feixe de luz para iluminar esses caminhos. Eu sei que alguma coisa mais profunda me fez crescer como o Sol e morrer como ele morre em sua morte oceânica para depois renascer. Sabe de uma coisa Miss C? Às vezes me pergunto o que houve nesse determinado período de dois anos que tornou tão vívida a lembrança desses momentos em minha memória. Basta fechar os olhos para reviver cada um daqueles dias, desde a sua permanente falta de educação, que já não me causava mais angústia – quando tudo era esquecido no período de uma semana – até a divisão das fatias de pão que levava para o lanche. Por mais estranho que pareça, o pão de forma e as fatias de frios que você trazia em nossa bagagem, foi uma das imagens gravadas com mais potência no meu olhar. Você trazia tudo aquilo com uma ternura e simpatia como eu nunca vira antes. Quando falava comigo – perguntando como eu queria o lanche preparado por suas leves mãos – parecia dedicar àquele ritual toda atenção e consideração. Mantinha naquele manuseio de separar fatias de pão e frios, uma expressão macia e caridosa. Eu gostaria de ter ficado com você para sempre assim, eu juro. Principalmente quando cerro os olhos eu penso naquilo com tanta saudade. Talvez aqueles anos tenham sido os mais preciosos para mim, porque você foi a primeira pessoa a me admirar de um jeito diferente, a maneira como os seus olhos brilhavam em certos momentos é uma coisa da qual nunca me esquecerei. Eles pareciam estar estourando de satisfação por estarmos tão próximos ao outro, e melhor, dividindo gentilmente o alimento mais sagrado que já existiu nessa terra. Às vezes, depois de um jantar ou lanche improvisado, nós íamos passear no meio do pequeno campo de futebol daquele Camping em Atibaia. Falávamos, e agora eu sei bem disso, com muita profundidade dos nossos sentimentos. Naquelas noites frias de céu limpinho, a gente admirava cada reflexo das estrelas e íamos tentando adivinhar se os pontos luminosos diferentes eram mesmo estrelas ou os planetas Vênus e Marte. Ah minha musa, aquelas fatias de pão de forma era o que fazia o nosso mundo ser governado pela magia. Um mundo vagamente delicioso, misterioso e desbravador, feito de um elo que nos ligava às nossas primeiras descobertas um do outro. Nunca mais o pão teve aquele sabor e jamais me foi oferecido por outro alguém daquele jeito. Naquela noite em que fizemos amor na grama molhada de orvalho, o pão do lanche a seguir foi mais saboroso do que nunca. Tinha um gosto de capricho e sedução, um sabor que até então desconhecíamos. Não existe maior dádiva ao paladar do que o pão oferecido com sinceridade. Era nesse ato de comer o pão e fazer amor que ocorria algo especial conosco. Era o sentido que dávamos a tudo aquilo na forma de penetrar no caráter essencial das nossas necessidades imediatas. Era quase como receber a mais pura verdade, embora a palavra verdade pareça precisa e sincera demais para definir tudo aquilo. Afinal de contas, as nossas conversas mais pareciam feitas de um tipo de linguagem dolorosa em alguns momentos. Eu acho tão extraordinário esse dom de lembrar dos acontecimentos de um passado praticamente distante aos nossos olhos. São esses mesmos pensamentos que nunca me conduzem a lugar algum ou que me levam a toda parte do seu corpo, ou, ainda me fazem lembrar como você era e, com certeza, continua sendo, uma fêmea metafísica nos meus sonhos. Não sei por que, mas parece que naquele tempo eu sempre pensava na maneira errada sobre suas intenções. Mas,uma coisa eu sei, quando era o meu pênis que me punha a pensar não havia como estar certo ou errado. Era apenas uma emocionante foda que nos esperava. Era assim que transferia imediatamente qualquer pensamento para a sua boceta. Eu me sentia como se fosse uma isca na ponta do anzol sendo mordiscada por um pacu faminto e desesperado – foi a boceta com mais habilidade de movimentos internos que conheci. Sim, uma grande caverna suficientemente escura para um morcego e tão clara, em outros momentos, que se podia encontrar o mapa da Austrália - você sabe bem o que eu quero dizer! Quando eu enfiava a mão lá dentro nunca sabia ao certo o que sairia agarrado nela - poderia ser uma ave de rapina, um peixe grande ou uma tartaruga. A resposta disso vinha sempre no seu gemido enquanto se contorcia ao sentir o atrito de entrada e saída do membro duro. Quando eu agarrava os seus seios você gritava igual a uma arara louca, e quando eu enfiava novamente a mão até o fundo da sua cratera cheia de lava em erupção, você resistia até se largar por completo. E o rabo? Uhhh, esse sim! Sempre foi um rabo maravilhoso que parecia infernalmente inacessível, mas que eu costumava passar devagar a ponta do pau no centro dele, isso até que relaxasse as pregas para facilitar a invasão sem pedir licença. Nessa hora eu fazia com que sentisse uma desconfortável sensação de que estava sendo rasgada ao meio, tendo como vértice do mundo aquele cu maravilhoso usado apenas para sentar em cima. Mas isso era pouco para você, não é mesmo, minha musa? Era necessário ir mais fundo. Para um homem como eu, nada parecia mais difícil do que se sentir como um animal amestrado nessa hora. Eu era um cão de raça com uma ereção rija e duradoura a ponto de explodir em risos por causa de uma boceta que falava e ria ao mesmo tempo. Essa boceta mantinha funções que iam além da normalidade de mijar e foder. Ela agia como um ventríloquo maluco contando piadas e cantando canções francesas ou italianas da década de sessenta e setenta, coisas capazes de fazer um pau pronto para foda rir antes de ser mordiscado pelos cruéis dentes do pacu faminto. Enquanto as suas pernas abertas convidavam o primeiro que chegasse a ocupar o espaço restante, as risadas e gemidos pareciam desenrolar-se como num filme pornográfico, totalmente livre de qualquer pudor. Só por isso eu me apressava em lamber cada pelo da sua boceta e cada gota do liquido que escorria de dentro dela; insistia em ficar ali até que suas mãos me puxassem e tirassem a minha cara enfiada dentro daquela gruta quente. Ah, minha musa, você raramente tinha um sorriso no rosto nessa situação, mas quando ria pela boceta era como se fosse uma gargalhada vulcânica e incentivadora de ereção. Quando a sua capacidade de foder era despertada, você ria mais que uma hiena ou um palhaço descabelado no maior circo do mundo. De vez em quando eu ouvia sons estranhos saindo daquelas beiradas era como se uma tampa houvesse sido aberta e os sons do mundo ecoassem ali por dentro. Era todo aquele mistério do ser encantado tentando fugir, tomando uma forma monstruosa para quase me arrancar os testículos. Mas, mesmo assim eu persistia e queria abrir o buraco mais profundo e largo que qualquer homem já pudesse ter aberto em você. A relação sexual intensa nos mantinha unidos, porque o pau e a boceta não tinham consciência verdadeira, mas conservavam uma risada fenomenal e permanente quando em ação. E nada mais importava mesmo que uma das piores doenças venéreas nos pegasse e matasse. Tanto fazia se fosse cancro, gonorreia ou sífilis, o importante era ficar entalado para sempre lá dentro – se é que fosse possível entalar num buraco com esse tamanho! O maior significado de tudo isso, e que foi bem sabido, é que você poderia lidar com todas essas doenças e também deitar com Fernando, Luis, Mauro, Wanderley, Antonio, Mário, César e tantos mais. Na minha imaginação as coisas corriam sempre dessa maneira, mesmo que lá no fundo eu soubesse que eram frutos dos meus sonhos loucos turbinados pela balinha oferecida por Zé Louco. Minha musa, minha musa... Nós andamos, comemos e fodemos, sempre juntinhos e compartilhando as mesmas seduções. Hoje o que me resta é o cemitério da sua alma em pânico, mantendo a derradeira esperança do sopro saindo dos seus lábios no momento final. Um pensamento talvez eu entenda: como eu pude ressuscitar uma coisa morta e enterrada a tanto tempo? Não apenas uma vez, mas inúmeras vezes nessa vida? O pior é que continuamos os mesmos durante a mais longa e escura noite do nosso longo percurso, agindo sempre como se acima de nossas cabeças houvesse um eclipse interminável por um acesso de frustração permanente.
- Psiu! Tem alguém aí? - Nanda me cutuca com a ponta do indicador.
- Oi Nanda. Eu estava tão mergulhado em pensamentos que nem vi você chegando. Já? Cansou de dançar as músicas do maluco beleza? Vai voltar lá?
- Acorda Re! O show já acabou. Nem te falo como foi bom. Durou bem mais de duas horas e passou tão rápido que nem percebi. Agitei tanto que estou com as pernas bambas. Você viu o Tom por aí?
- Ele estava aqui agorinha mesmo. Vi quando ele saiu cambaleado para o meio do Camping.
- É... Espero que ele volte logo para prepararmos algo para comer. Por que está aqui sozinho?
- Nem reparei que estava sozinho. Todos estavam aqui comigo agora mesmo. Acho que cochilei e sonhei com um gigante, nem vi vocês quando saíram.
- Nossa Re. Você está tão estranho. Aconteceu alguma coisa no tempo em que fui ao show?
- Não aconteceu nada.
- Tem certeza?
- Claro!
- Hummm.
- Não acredita em mim? É sério. Está tudo certo comigo.
- Você não está bem. Os seus olhos estão vermelhos.
- Que nada! Já falei... Eu estava cochilando e sonhando. Talvez o sonho tenha me afetado um pouco.
- Puxa vida, Re. Queria tanto que você parasse de pensar nela. Não vale a pena. Será que você nunca vai entender isso?
- Eu entendo sim e estou tentando me curar dessa praga. Mas eu não estava pensando nela. É só impressão da sua parte.
- Ahhh Re... A sua resposta é negativa, porém eu noto que existe um vazio aí dentro que precisa ser preenchido. Você está se tornando uma espécie de esquizoide devido à experiência traumática que teve com Miss C. Isso é uma coisa muito perigosa que pode levá-lo a um tipo de loucura sem volta. Algumas pessoas que conheço passaram por essa experiência de amar ou apaixonar-se por alguém sem ter esse sentimento correspondido, e entraram numa solidão dolorosa. E, mesmo quando tentavam escapar dos muros que ergueram, não conseguiam se ajustar ao mundo externo. O fenômeno desse tipo de relação que une a própria identidade à de outra pessoa, faz com que imaginemos que toda solidão acabou porque passamos a ser dois em um só. Então todos os problemas parecem resolvidos e a vida feita de alegria constante, passamos a ver o mundo como se tivéssemos poderes ilimitados. É assim que a realidade invade a fantasia da gente de um jeito que não há como não acreditar em tudo que parece ser perfeito. A sensação subjetiva de que estamos amando nem de longe parece falsa. Mas quando, mais cedo ou mais tarde, os problemas da vida cotidiana e das diferenças de opinião começam a afetar a relação, é que vemos o quanto é importante sermos prudentes, ao invés de nos deixarmos levar pelo simples desejo de ter alguém ao nosso lado só por ter ou porque achamos perfeito antes. Essa coisa que chamamos de paixão também podemos chamar de regressão. Essa experiência de nos fundirmos ao ser amado nos leva de volta ao tempo em que estávamos na barriga da nossa mãe. Unidos ao ser amado achamos que podemos superar todos os obstáculos confortavelmente, acreditando que aquela possibilidade da onipotência e proteção ainda existe. É devido a essa ilusão de segurança que algumas pessoas nunca crescem e acabam agindo como tiranos e autocratas, mandando nos pais, irmãos e qualquer pessoa que faça parte da sua vida, até mesmo nos bichos de estimação. Agem como se todos fossem soldadinhos num exército particular onde só existe um general. Geralmente respondem com uma fúria infernal quando qualquer um dos envolvidos não aceita os seus ditames. A sua Miss C era bem assim. E você sabe que ela nunca irá mudar porque nunca irá crescer.
- Eu concordo.
- Olha Re... Sinto dizer, mas ela sempre foi vazia por dentro. Não tinha nada a oferecer a você. Ela simplesmente era uma dependente passiva do amor que você nutria por ela. E devido a essa falta de identidade afetiva se tornava alguém faminta em busca de alimento, mas que nunca tinha nada para dar em troca. É como se fosse um poço sem fundo implorando para ser preenchido, mas que nunca conseguiria ser totalmente completado. Gente como ela nunca se sente totalmente realizada em nada. Sempre irá reclamar que está faltando uma parte essencial, ou lamentará a solidão que ela mesma provocou afastando para longe todos os de boa intenção.
- Estou perplexo com as coisas que você fala. Tudo parece ter uma lógica misturada com bom senso.
- É tudo muito simples, Re. Toda e qualquer relação precisa ser um investimento de ambos. Tudo se movimenta com a maior força de vontade disponível e muito, mas muito mesmo, auto-sacrifício e paciência das partes. É uma doação que damos ao outro e ele a nós, basta querer para se envolver e saber escutar o que o outro deseja. E depois é só viver o melhor que puder sem nunca se arrepender, porque a vida nada mais é que um aprendizado que gira sempre em torno das mudanças que escolhemos e das opções que temos para sair da mesmice. A vida sempre se tornará nossa aliada mesmo quando desafiada.
- Minha amiga Nanda... Estou sem saber o que dizer. Jamais pensei que pudesse ouvir tantas coisas bonitas de você. Parabéns por essa clareza de pensamento. Espero que você use tudo isso no dia a dia e no seu relacionamento com o Tom.
- Uso sim, Re. E como uso...
- Estou um pouco cansado. Vou me deitar na barraca, parece que levei uma surra. Depois a gente conversa mais um pouco. Amanhã pretendo acordar cedo e seguir a caminho da caverna dos morcegos.
- Está bem. Deite e coloque a cabecinha no lugar enquanto vou procurar a turma.

    Miss C, por hoje vou parando por aqui.

    Desejo que Deus a acompanhe em seus passos.
    Re.


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