sexta-feira, 19 de outubro de 2018

O Pecado Capital Parte 15

              EPISÓDIO 15  (Erraticidade)       



      Cá estou novamente no canto. 
      Acho que devo estar louca. 
     Mas não me importo. Isso é apenas mais um fato insignificante da minha vida sendo revelado nas entrelinhas. Mas acho que isso não é surpresa para quem ainda corajosamente tenta se relacionar comigo e entender por que sou assim.
   Confesso às minhas visões, quais nem sei mais para onde me levarão nesse milésimo de segundo, que nunca mais tentei e nem cheguei a sonhar em falar ou fazer as mesmas coisas outra vez. Se eu falei ou fiz, como se estivesse numa dissertação solitária no meio do deserto, foi o momento em que apenas fiquei sentada na beirada observando os acontecimentos. Então, com boca, ouvidos e olhos bem abertos, sentindo-me subjugada e extasiada com as figuras impressionáveis que ainda não me viam e nem conseguiram olhar no fundo dos meus olhos para penetrar minha mente, fiquei estática.
    Lamento que o tempo dessa observação, juntamente com o da minha vida, tenham passado tão rapidamente. 
    Nunca antes, como agora, me ocorreu levantar a voz para as vozes de forma tão assertiva, para fazer uma pergunta que atingisse o X da questão. Lamento ter me fechado como um marisco e bancado a palhaça com ar de desentendida e arrogante metida, atirando ao ar falsas expectativas, ou, simplesmente dissimulando o que era tão óbvio no meu comportamento.
    Imagino que aquilo que todos um dia admiraram era a inteligência que eu parecia demonstrar, muito mais que minha beleza, já que nunca fui de sensualizar. E, invariavelmente, fazia bom uso dessa inteligência diante daqueles que eu não desejava dar satisfações – alguns próximos e outros distantes, todos sem importância depois que Solange se foi. 
     Mas minha timidez, o constrangimento e a falta de confiança, depois do passamento da minha irmã, aumentaram e me mantiveram à parte e completamente solitária. E assim percorri alguns anos de tentativas e mais tentativas atrás de um mesmo objetivo - um amor - mas era uma solidão misturada à futilidade de me sentir uma incompreendida, uma pessoa diferente e cheia de talentos ainda inexplorados. Eis aí o ponto que mais me afligiu e ainda me aflige impiedosamente, quando tudo volta à tona nessa nossa conversa maluca na qual você me manda fazer coisas.
    Aqui sozinha, porque Gustavo não conta mais, revivo passo a passo meus atos de antes e de agora, mantenho a mesma antiga sensação de me sentir novamente excluída. É essa sensação que me domina e transforma. E com isto quero dizer que ninguém me conheceu como eu verdadeiramente era e nem conhece o que me tornei, muito menos por que me tornei assim - exceto você que me ouve e de vez em quando solta ordens em meus ouvidos. 
    Todos pareceram muito impressionados com o que demonstrei ser – praticamente se sentiram arrastados, hipnotizados e magnetizados pelo mistério que carrego. E eu não chamaria isso de algo que mascara a verdade, mas sim um jeito muito meu de seduzir os outros. Eu sei que muitas vezes não sou eu, garanto, mas sim a personagem que eu sei representar convenientemente em performances muito bem elaboradas, que apenas alguém com os mesmos dons talvez percebesse a farsa. Assim foram e continuam sendo minhas artimanhas.
    Sim, embora eu veja essas performances pelo ângulo que me convém, às vezes me pergunto se seria eu mesma por trás destas cenas tão bem elaboradas ou uma força maior que toma posse do meu corpo, dos meus atos e da minha alma, sempre e objetivamente em busca de um espírito semelhante - é o que mais me faz acreditar e me impulsiona  através do drama que carrego.
       Parece um castigo viver tão só; dormir, acordar, correr atrás e nada do prazer realmente acontecer.  
     Nunca me senti como alguém com coragem suficiente para tocar a borda do círculo que protege o interior de onde partem todos os conflitos e as dúvidas permanentes - sempre achei melhor não cutucar e não mexer com que está quieto. E tudo foi me destruindo por dentro aos poucos. Depois de um tempo saiu de uma vez num divã para ser compartilhado, analisado, discutido, mas nunca solucionado, e nem mesmo aliviado.
    As figuras estranhas que conversam comigo, saídas da minha imaginação, surgem do pequenino conhecimento que tenho do outro mundo –  o mundo sombrio - não seria natural que eu me sentisse à vontade com tudo isso? Mas não é bem assim. Ainda mais quando caio na real e vejo Gustavo envolvido nessa situação.

   Todas as vozes me falam de uma maneira muito misteriosa, você também conversa comigo de uma maneira misteriosa, mais misteriosa que minha própria imaginação. Eu fiz tudo que me pediu. Tim-tim por tim-tim, sem pestanejar. Agora quer que eu pule etapas? Olha... Você não me domina! O meu silêncio calará sua voz, pois meu destino estará em breve nas mãos de idiotas. Se na maior parte dessas conversas, dessas ordens expressas, houvesse o uso de palavras de verdade, as quais eu pudesse entender o significado do bem e não do mal, com toda a certeza, eu não estaria desorientada e acuada no canto. 
     O som da voz humana me seduz  e a imagem do ser vivo me fascina. E por mais distante que esteja o mundo das vozes do meu mundo real, as cenas sempre serão as mesmas: gente, muita gente nua, pessoas flutuando com o corpo largado e em chamas, olhando para cima em busca da luz e das preces que nunca chegam. Tudo misturado: amor, conflitos, prazer, hábitos, costumes, inquietude, veneração, mimetismo, tortura, violência, intriga, traição, sedução, perversão. Idêntico ao desfile de demônios que habitam por dentro e me levam a tantos pensamentos estranhos. 
     Tudo faz parte de mim, tanto quanto os móveis desse cubículo, já me sinto parte da mobília. Também o sol, a lua, as estrelas e as paisagens, as escadas, o elevador, tudo o que marcou o meu caminho e o de Gustavo até aqui.
      Eis a revelação: foi a natureza dolorosa de todas as criações da minha mente que me afetou, o que parece de certa forma incompreensível a outra pessoa que não seja eu mesma ou outras que estejam dentro da minha cabeça.
       Em meus pensamentos saio à rua e vou me movendo em meio ao povo que nunca me impressiona por qualquer situação presente. Não sinto a presença de qualquer impulso religioso profundo, o qual me faça crer que há alguma verdade na humanidade. Nem um mínimo impulso estético, que me faça admirar qualquer criação dita como bela. Em meu raio de visão nunca existirá arquitetura sublime e nem danças sensuais para homens excitados com membros eretos e testículos latejantes, muito menos um ritual para a conquista ou sedução daquilo que não quero oferecer aos deuses ou aos demônios que me habitam quando abro as pernas. Eu me movimento num busca constante e pretendo realizar alguma coisa que não sei bem o que é: algo que torne o meu corpo mais leve e minha mente tranquila. Mas o que me acalma é o líquido vertendo de dentro para fora até virar uma pasta grudenta.
      Em minha movimentação interior encontro grandes pontes para atravessar – são enormes e não enxergo o fim. Do nada estou no topo de um arranha-céus balançando no vazio, presa apenas por uma das mãos no para-raios, o que me deixa com calafrios ao olhar para baixo – mas não tenho medo e me sinto livre. Essa natureza mais perversa do pensamento consegue tirar de mim a sensação de medo. Ela desfigura meu instinto de autopreservação a cada passo. Ao dar mais uma balançada no ar retorno de mãos vazias ao ponto inicial no canto da parede. 
    Não há nada de novo agora, nada que seja exótico, bizarro ou espiritual. Pior, não havia mais nada de mim quando me inclinei naquele beiral, nada havia o que pudesse referenciar ou lamentar, além da morte dos outros.
      Pertenci por alguns milésimos de segundo a um lugar onde todos flutuavam ou corriam para lá e para cá feitos malucos. Meu coração palpitou com o forte desejo de ter algo para adorar e referenciar naquele instante, desejei ser admirada pelo que eu era. Necessitei urgentemente de outros corações que palpitassem da mesma forma. Mas foi uma pena que não houvesse nada para se fazer naquela hora. Não havia gente com sintonia idêntica e nem corações palpitantes, apenas o calor escaldante de uma superfície vermelha.     
     Cá estou. Sozinha. Há mais solidão do que eu posso administrar. Estou quase no topo de uma estrutura feita de aço, concreto, vidros fumês e janelas pintadas de branco. Há esse mal-estar no ar e essa droga de solidão por toda uma vida inútil. Há tristeza de amor sem amor, arrependimento sem rancor. O ranço que nunca sai desse ambiente está no ar.
     Olho demoradamente o horizonte pela fresta da cortina. Permaneço por mais um instante no canto balançando as pernas e esticando os braços, estou livre para correr e saltar pela janela em busca do nada para apenas voar até o mar, fugir das vozes e sumir no meio das ondas.  
    Que ironia: quão belo é o céu azul numa hora dessas. 
    Uma pena que o céu azul da vida real acontecida nesse quarto, bem no meio da madrugada, nunca terá essa mesma beleza...











Um comentário:

  1. Patricia Ramos Sodero27 de outubro de 2018 às 15:13

    Boa tarde,Sr.Autor!Esse capítulo mostra o quanto Sarah é conturbada em seu próprio mundo.Mundo esse que,fica claro ser "tomado" por algum ser que a faz reviver todos seus erros.Erros esses com a família e na sua parte sentimental.Onde teria fracassado?Porque houve a separação com o Léo?Sua família seria também culpada por não aceitá-la assim,como ela é?Tomou caminhos diferentes da normalidade que todos achavam.Acredito que a morte de sua irmã,Solange,tenha contribuído para que Sarah ficasse nesse estado de paranormalidade.A pessoa de confiança não está mais ali.A princípio,deduzi que estivesse em outro plano.Mas acredito que faça parte mesmo da sua perturbação,tudo que ocorre a sua volta.Que coisa...um mistério ainda a ser resolvido.Isso veremos no decorrer dos próximos capítulos.Parabéns!Isso nos faz ficar cada dia mais intrigados.Bjs...

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