terça-feira, 4 de setembro de 2018

O Pecado Capital Parte 10

                                        EPISÓDIO 10 (VICISSITUDE)    

   No momento seguinte do meu pensamento recuo no tempo, retorno até uma cena anterior no começo do relacionamento com o Léo.
    Essa situação foi no Shopping Center norte em São Paulo - em nossa passagem por lá para comprar uma calça jeans para ele. Era uma época que eu acreditava que seria possível esquecê-lo se começasse a me interessar por outra pessoa - já que ele dava toda demonstração que não estava interessado em fazer planos para o futuro.

    Eu ainda não tinha a receita certa de como iria tirá-lo de vez do meu pensamento. Por isso, inventava algumas realidades forçadas e matraqueava sem parar em nossos encontros, era um discurso enfático de orgulho ferido, e com  intuito de exorcizar por completo todos os meus medos e fragilidades – ou, quem sabe, pela insegurança da perda quando ele considerasse a nossa relação muito previsível, imaginando que logo eu voltasse a falar de planos para o futuro.  
   Porém, cada vez que a discussão terminava logo tudo recomeçava do zero. Com o passar dos meses sempre pudemos voltar a nos entender numa boa. A vida, com toda sua grandeza e generosidade, ia se ajustando.
   
    Bem... Com um pouco mais de 1 ano que tínhamos nos conhecido eu já estava aflita – tinha me apaixonado pelo seu jeitinho e queria ter me casado com ele com seis meses de namoro.
     Era o começo do inverno e acho que esse tempo nos marcou bem mais por todos os passeios que fizemos juntos – sempre achei o final do outono / começo do inverno muito mágico e colorido embalado pelas festas juninas que frequentávamos.

      Nós éramos tão carentes e a beleza da natureza, somada aos adornos festivos, trazia brilho aos nossos olhos nos passeios que fazíamos com o pouquinho de dinheiro disponível. E, por isso, talvez, escolhemos a forma errada de atravessar a vida buscando avidamente tábuas de salvação afetiva ou distrações, sem nos preocuparmos em planos para o futuro. O afeto tem como preço o apego. Isso é inquestionável e fatal. 
      Na maior parte daqueles momentos eu sonhava com outra espécie de relação; um tipo de ternura livre e leve, aceitando a posição dele sem comprometimento total, mas mantendo meu ideal que no futuro próximo seria esposa e mãe. Mas todos sabem que essas não são as premissas de uma relação verdadeira quando a sintonia é diferente. Desta forma, alguém sempre acaba prisioneiro de um sonho que parece impossível ou de uma realidade injusta.  
     No fundo, nunca somos livres para ser o que somos ou dizer abertamente o que se deseja do outro sem que ele se sinta contra a parede ou o relacionamento entre numa faixa de desgaste - situação que eu evitava e tinha medo.
     Essas lembranças e conclusões dos fatos - ou outras ainda menores - somadas me parecem maiores do que conseguiria suportar naquela época, ou superar com o tempo, se não fosse eu uma mulher forte. O que me restou a fazer foi apenas aquilo que fiz: seguir aqueles passos rápidos sem olhar para o chão e muito menos para trás, até ter ficado exausta e sem palavras diante dos diálogos que mantínhamos.

       Uma cena de revelação:

   - Sabe de uma coisa Sarah? É muito difícil começar esse assunto, mas tem algo que me incomoda há tempos...
   - Se incomoda, então diga de uma vez, meu amor.
  - Bem... Estive lendo um livro que tinha a seguinte frase: “As famílias mais felizes são as que se conhecem mal”. Pensei imediatamente na sua situação.
   - Na minha situação? – meu olhar de indignação e surpresa.
   - Então... Nós já podemos imaginar o tanto de verdade que existe na frase. Várias vezes você me falou da sua falta de sintonia com os outros da sua família.
  - Tá... E daí?
  - Estou querendo dizer que sintonia não tem a ver com proximidade ou consideração. Sintonia é outra coisa, entende?
  - Não! Ainda não estou entendendo o porquê deste assunto.
  - Sintonia, por exemplo, é esse elo que criamos entre nós dois. E você me cobra o tempo todo por achar que já temos o conhecimento e sintonia suficientes para nos casarmos.
  - Hum.. Sim. Eu penso isso mesmo! E?
 - Certa vez, logo nos primeiros dias do nosso namoro, você me disse que quando era mais nova tinha medo de casamento, lembra disso?
 - Sim, claro que me lembro, ainda não estou com Alzheimer.
 - Você me contou que já havia namorado e a sensação era de arrepios quando o assunto era casamento. Reforçou que vivia dia e noite com dores de cabeça só de imaginar como seria constituir família – que, na sua visão, ter filhos, educá-los e orientá-los para a vida era o ponto máximo ao qual uma mulher poderia chegar. Você não queria isso. – Pois, ao final, com o passar do tempo, se tornaria escrava de uma situação difícil de mudar com marido e filhos folgados; engordaria e o marido perderia o interesse e os filhos seriam ingratos.
 - Tá. Pensei, falei... E daí? Eu era uma adolescente insegura que não tinha noção da vida. Por que está voltando com isso?
 - É que eu queria me aprofundar um pouco mais nesse assunto. Imagino que talvez você agora culpe o seu pai por ter orientado vocês com uma educação tradicional. Acho que agindo assim ele provocou em você um nível elevado de necessidade em cumprir o programado – o que agora a impulsiona a querer se unir definitivamente a alguém. Também acho que o fato do casamento dos seus pais ter dado tão certo se tornou um peso para você e sua irmã.
 - E o que você tem a ver com isso? Agora resolveu cuidar da vida dos meus pais? O meu problema não é e nunca será eles. O problema é minha vida e meus objetivos que você não me ajuda a realizar!
   - Não seja grossa. Não acredito que eu seja seu problema. Veja bem: faz tempo que estou tentando entender alguns porquês. Já que estou envolvido emocionalmente com você, preciso de respostas para ter uma ideia de como será nosso futuro juntos. Olha só uma coisa, vou falar bem a verdade: acho que você sempre levou uma vida egoísta e de rebeldia mascarando a realidade conforme sua conveniência, e acabou estragando pouco a pouco todas as pessoas com quem convive. A sua simpatia nunca foi sincera por ninguém, por isso nem conseguiu se dar bem nos estudos. Acho que esse jeito de ser criou um grande pânico em você - a imagem e a necessidade do casamento perfeito está bloqueando a sua vida amorosa.
   - Não estou gostando... Acho melhor a gente mudar de assunto. Não quero mais conversar sobre isso. Você acha que me conhece, mas nem imagina o que se passa na minha cabeça.
   - Precisamos conversar. Uma relação sem conversa não é relação.
   - Podemos falar de outras coisas? - já com a minha paciência no limite.
   - Vamos terminar esse assunto e depois a gente fala de outras coisas e em seguida vamos comprar a calça conforme combinamos.
   - Não vamos mais a lugar algum! Quero ir embora. Pode me acompanhar em silêncio até o carro ou terei de voltar para casa de ônibus?
   - Você escolhe, pode ir embora comigo ou de ônibus, mas antes vai me ouvir. Presta atenção: olha aqui! Eu acho que você deveria ter percebido que esse meio de perfeição o qual deseja não existe e nunca existirá. É tudo aparência. Acho que o entendimento, até meio inconsciente, da situação começa a ter efeitos danosos na sua compreensão do que é casamento. Você não consegue aceitar que nunca aparecerá alguém perfeito em sua vida ou que o amor não lhe cause um tipo de dependência - embora, eu imagino, nunca tenha conhecido alguém que vivesse de outra forma que não fosse de depender emocionalmente de outro alguém. Você luta todo o tempo a favor e contra seus próprios desejos e incoerências. 
     É assim que você se mostra a mim, uma mulher capaz de desejar um relacionamento e se envolver até um determinado ponto, mas na hora H me culpa ou alega qualquer motivo que só para você faz sentido. Esse e tantos outros raciocínios que eu tenho denotam a sua índole insegura e egoísta. Você é alguém que nunca sabe o que quer, mas que no discurso se mostra forte e cheia de razões lógicas porque se diz injustiçada por tudo e todos. Não é assim que se define? Você vive tão perdida em dúvidas que nem se importa do mal que causa em quem a ama. Lembre-se de uma coisa: o encanto de uma pessoa está em sua personalidade sólida e em fundamentos dignos. Acho que você não tem nenhuma destas qualidades, pois se tivesse não faria a proposta de nos “ casarmos” – só porque um dia parou diante do espelho e se sentiu velha ou imaginou que nos daríamos bem por que sou uma pessoa calma. Quando um dia eu tive a ilusão que algo interessante poderia acontecer conosco, e pensei em aceitar o desafio, aí já imaginei que você diria que não queria mais porque estava em dúvida ou porque não temos dinheiro para casar.                        
     Gostaria, de verdade, que parasse com a palhaçada de colocar culpa em mim. Fui claro? Você me deixa muito puto com esse comportamento. Eu nunca vou conseguir acreditar numa vírgula do que diz se continuar agindo assim.

     Achei que a conversa já tinha dado e me levantei abruptamente, empurrei a cadeira, peguei a bolsa e saí esbravejando:
    - Cansei de você! Não quero mais! Não me ligue mais. Não me procure mais! Não apareça nunca mais na minha frente. Tchau, Léo.
    Fui embora pisando duro e em direção ao ponto de ônibus para voltar para casa com os olhos cheios de lágrimas.

    Uma semana depois...

     - Deixa eu ver. Acho que não tenho nada para comer aqui na bolsa. Serve manteiga de cacau para passar nos lábios?
      Emendei fazendo cara de decepção: - Puxa vida, que pena. As coisas que me pediu para comprar estão lá no porta-malas e não dá para pegar agora.
    - Trouxe tudo que pedi?
    - Aquela lista enorme? Trouxe sim. Não sei por que, mas estou com a sensação que esqueci alguma coisa. Mais tarde eu lembrarei o que é. Ainda falta muito para chegar? Estou com vontade de fazer xixi.
    - Acho que mais uns dez ou quinze quilômetros estaremos lá. Estou vendo um posto de gasolina, parece que tem restaurante, vamos parar para ir ao banheiro e aproveitar para matar a fome.
    - Tá bom. Acho melhor mesmo.
     Léo parou o carro numa vaga próxima à entrada. Fomos a passos rápidos, porém abraçadinhos, mas a posição dos braços parecia meio incomoda para ambos.
   - Vamos andar de mãos dadas por que abraçados não acertamos o passo. Parece que a nossa diferença de altura atrapalha um pouco. Eu tenho 1.85m e você deve ter mais ou menos 1.55m, não é?
   Eu dei um meio-sorriso e respondi com voz irônica:
   - Vamos dizer que tenho 1.60m –  dei risadinhas tímidas no final.
     - Ah sei lá. Se não tem isso está bem perto. Devem ser essas botas com saltos baixos que não ajudam muito. 
     Adoro esse jeito da sua calça jeans por dentro do cano. Acho que fica muito bem em você. Escolheu certinho como me seduzir. Como dizem lá no interior: "ornou e deu mais formosura pra sua belezura". Falando sério agora: deu, assim, - como vou dizer? - um porte diferente, uma elegância que impõe respeito e deixa você mais jovem. Aliás, uma mulher com sua postura nem precisa muito para impor respeito.
  - Já me disseram isso. 
  - Disseram o que? Que impõe respeito ou que fica bem de botas?
  - As duas coisas.
  - Sei, sei. – Ele deu um sorriso amarelo, com um “Q” de decepção, e levou na esportiva. Percebi que quase esboçou um sorriso de canto de boca do meu jeito humorístico.
     Um para direita e o outro para esquerda, nos separamos para ida ao toalete e apontamos o lugar do encontro na saída. Depois de alguns minutos estávamos num hall com mesas, poltronas e alguns folhetos anunciado ofertas. Caminhamos um pouco e nos aproximamos do balcão para fazer o pedido. Eu perguntei:
     - O que você vai comer? Aquelas coxinhas parecem deliciosas.
     - Não quero nada.
     - Tem certeza? Não sentiu fome por dirigir tantas horas?
     - Não. Eu comi alguma coisa antes de sair de casa. Faz assim: escolhe você que eu vou pensar.
     - Tá certo – respondi tomada de algum desânimo porque não gosto de comer sozinha.
    Pedi ao atendente café com leite médio e um copo de pão de queijo. Voltei o olhar e perguntei:
    - Tem certeza que não quer nada? – ele titubeou um pouco e respondeu que tinha mudado de ideia – o que me animou bastante:
    - Pode pedir igual ao seu - falou com indecisão.
    - Pão de queijo, café com leite? – coloquei uma dúvida quanto ao seu gosto ser igual ao meu.
    - Sim. Pode ser.
    - Açúcar ou adoçante?
    - Pode ser aquele adoçante líquido - apontou para o frasco numa cestinha de palha sobre o balcão. 
    O atendente nos trouxe o pedido e continuamos uma conversa rasa entrecortada pelo olhar curioso ao ambiente com diversidade de pães, pedaços de bolo, salgados, doces e guloseimas - pelas quais tive que me conter por que já me sentia acima do peso. E do lado oposto ao balcão do restaurante uma exposição de largos cadeirões em madeira, redes de balanço e esculturas talhadas em pedaço de tronco de árvore. Chamei sua atenção para um quadro grande com a imagem de um saxofone solitário. Ele falou:
     - Tenho um primo músico. Ele toca alguns instrumentos e gosta de saxofone. Vive ensaiando lá no quartinho dos fundos da casa do meu tio.
    - Sério? Que tipo de música ele toca?
    - Não sei, eu vou pouco lá. Quando eu ia tinha que me acostumar a ouvir os ensaios em que ele repetia várias vezes o mesmo trecho de música dos Beatles. Devia ser uma tortura para a família ouvir todos os dias aqueles ensaios.
    - Eu gosto de saxofone, mas não tive um e nem sei tocar nenhum instrumento. Acho sexy quem toca.
    - Caracas! E por que você nunca se interessou em aprender música?
    -  Foi por que demorei a escolher o que queria estudar e acabei ficando fora da escola ao terminar o colegial.
    - Você é muito inteligente. Poderia ter ido adiante.
    - Pois é, dizem que sou. A minha família é de gente inteligente, assim diz minha irmã.
    - Então... Estou notando que ela tem razão... Também cheguei a pensar em desistir um dia - ele falou com certa nostalgia. Mas a frase pareceu ter duplo sentido.
     - Vamos voltar para o carro para não chegarmos muito tarde?
     - Sim, sim. Vamos.
     Entramos e nos acomodamos no veículo.  Ele colocou um CD para tocar. Era a música Brown Eyed Girl de Van Morrison. Então me olhou com admiração e comentou:
      - Que coincidência, você tem olhos castanhos como diz a música. 
        Dei um sorriso e respondi:
     - Você tem bom gosto. Eu já a ouvi no rádio. É uma música bem bonita.
     - Se gostou feche os olhos que vou aumentar o som. Sinta a música passando por seus ouvidos chegando rápido lá dentro da cabeça. Sinta profundo. Respire fundo. Isso! Magnifico! Você está indo muito bem. Continue sem abrir os olhos.
     - Nunca ninguém tinha me mandado ouvir a música assim num carro - quase gritando para que ele me ouvisse e ele gritou também. 
     - Isso, isso. Não saia da concentração. Continue imaginando. É uma "viagem" que está fazendo através da música - Eu sorri assim, daquele jeito de alguém que quer dizer sim mas não diz nada.
      Quatro minutos depois...
  - Gostei. Vou refletir depois sobre essa experiência.
  - Eu, na maioria das vezes, fecho os olhos quando a música me atrai, mas nunca faço isso quando estou à noite numa estrada perigosa dirigindo a 100 quilômetros por hora - ele sorriu sarcasticamente. 
   - Ahhh Léo, eu acho que não existe música feia quando a gente entende o sentido da criação ou quando criamos um sentido especial para ela - arrematei o assunto buscando uma frase de efeito para me mostrar entendida.
  - É verdade. Acho que você que é especial. Você fala coisas muito interessantes que fazem a gente pensar depois - ficam guardadas e voltam quando menos a gente espera. Por isso resolvi convidá-la para essa viagem. Acho que também estou gostando muito de você, muito além do que eu mesmo gostaria que fosse.
  - Isso é uma declaração de amor? - ri e dei uma pausa para arrematar - Pode crer que além de pensar no que eu digo, você também lembrará do que estamos fazendo de diferente. Esse tipo de situação deixa recordação. O quanto isso vai mexer com a gente só saberemos depois, muito tempo depois, talvez em anos. 
    Olha só, estamos chegando. Veja lá a placa na estrada. Estamos bem perto agora. Indica que temos que pegar a outra rodovia `a esquerda - sentido Campinas - no segundo acesso.
  - Ainda bem que acertamos o caminho. Agora só falta achar a pousada. Eu sei que é numa rua de terra que margeia a rodovia Dom Pedro I perto do km 80 ou 81.
  - Vamos tentar encontrar, se não acharmos eu ligarei para o telefone que consta no voucher.

                                

                                                                                                                              Continua...




3 comentários:

  1. Bacana o texto, me fez lembrar de um antigo conto que escrevestes , no seu blog Andrea Cardoso

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  2. Ola caro amigo!
    Sim quando estamos em um relacionamento, fazemos planos, pensamos em ser somente felizes.
    Todo começo de um relacionamento, pensamos que tudo é um mar de rosas.
    Com a convivência vamos nos deparando com manias que adquirimos no decorrer de nossas vidas. E para nos acostumarcos precisa de ter muito preparo.
    E nada como o dia a dia......
    Ahhh adorei a musica ....

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  3. Olá,caro Autor!Nesse capitulo,vemos bem que os momentos de Léo e Sarah,sempre foram de oscilação.Na mesma hora que estão em perfeita harmonia,sintonia,algo passa a incomodar um dos dois e pronto...a encrenca está feita.As provocações de Léo também não ficam atrás.Logo se afastam,como se realmente fosse o fim,e quando menos esperamos,estão juntos novamente,como se nada tivesse acontecido.Talvez,nesses escapes pelas estradas,possam chegar a uma conclusão se devem ou não continuarem juntos.Precisam de equilíbrio.Palavra chave em meu jeito de ver.
    Vamos aguardar.Muito bom esse seu conto,Sr.Autor.De uma certa forma,temos como refletir também.Bjsss...

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