sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O Pecado Capital Parte 11

                              EPISÓDIO 11 (Hedonismo)

     A poucos metros de distância, numa tranquila rua de chão batido, quase toda tomada por vegetação de ambos os lados, encontramos a pousada totalmente na escuridão. Um local modesto, com chalés que mais pareciam casas térreas de um condomínio de classe baixa. Ao tocarmos a campainha do portão principal, a mulher que nos atendeu deu a entender que devido a nossa demora desistiu de nos esperar naquela noite, ainda demonstrando um certo mau humor por ser acordada do primeiro sono. Ela parecia uma bruxa de pijamas com cabelos desalinhados, e seus  olhos tentando se adaptar à escuridão na dificuldade em desenroscar a corrente e o cadeado do portão. Pediu que estacionássemos uns metros à frente, próximo do salão de café da manhã, e nos deu papel e caneta para preenchermos a ficha com nossos nomes, telefones, RG e CPF. Entregou-nos a chave do chalé 8 apontando o caminho e acrescentando que se tratava de uma acomodação muito boa, pois já morara nesse chalé com marido e filhos. Seguimos, passando diante dos outros chalés que estavam totalmente escuros e quietos, pareciam desocupados. 
    Tudo o que se podia imaginar de uma estrutura básica para um local bem modesto estava ali: cozinha com 2 quartos grandes e banheiro. Havia geladeira, fogão de quatro bocas, mesa com quatro cadeiras, microondas antigo em cima da geladeira, talheres, pratos, travessas, copos de vidro e de plásticos, abridor de lata e garrafas e vasilhas de Tupperware de vários tamanhos e formatos em cima de uma bancada em L. Também: detergente, esponja de lavar louças, inseticida, rolos de papel higiênico, desinfetante, sabonete liquido; tudo embaixo da pia. No quarto da frente: cama de casal com 2 criados-mudos, guarda-roupas com cabides de plástico, cobertores, travesseiros, lençóis, edredons e almofadas. No outro quarto: 2 beliches com 2 colchonetes para cada cama, uma cadeira giratória surrada, uma máquina de costura Elgin muito antiga, uma estante cheia de bugigangas compradas em lojas de 1,99 e uma gaiola de passarinho enferrujada pendurada no canto do teto, vazia. Suspeitei fosse esse o quarto dos filhos da bruxa. 
     Pude notar na noite da chegada, pequenos jardins retangulares nas muretas das varandas de cada chalé, o "nosso" parecia o mais bem cuidado. Lembrou-me, por alguma razão absurda, dentro das devidas proporções, o jardim da entrada da casa da minha avó. De qualquer modo, logo senti que era um lugar que passava a sensação que eu poderia sonhar. 
     Ali, olhando por alguns instantes o "nosso" jardim, e ao mesmo tempo o céu estrelado de quase meia-noite, eu sentia o ar suave e o zumbir dos insetos da noite se misturando com o farfalhar das folhagens, como o murmúrio de vozes ao longe. Isso me trouxe um intervalo para paz e sensações de introspecção, num devaneio profundo como jamais senti. Era como se meu passado se tornasse débil e sombrio; aos poucos me fazendo imaginar que estivesse ali devido a uma espécie de combinação de Dharma e Karma do universo, passando por muitas encarnações. 
     Numa fracção de segundos chegou uma deliciosa sensação de desmembramento que me dominou, eu voltei no tempo: brincando de bonecas, espreguiçando e correndo com o vento em busca do mistério do passado imaginário que foi sufocado pela realidade brutal e cruel. 
     Nesse estado de espírito, percebi Léo se movimentando e passando por mim várias vezes no vai e vem apressado, me fitando como se eu fosse uma estranha atrapalhando a passagem. De repente, senti uma mão no meu ombro. "No que tanto pensa?", eu o ouviria dizer. (Mesmo depois de tanto tempo ainda recordo como a voz dele parecia vir de longe, muito longe.) - "Pensando..." 
     - "Pensando?" 
     - "Eu não pensava em nada a respeito de nós dois, eu pensava no que ganhei e no que  perdi nesses anos".  
    Enquanto Léo ia tirando nossas coisas do carro, descarregando na varanda, eu resolvi me mexer e transportar tudo para dentro. Rapidamente terminamos e nos sentamos lado a lado na escada de três degraus de acesso à varanda. Eu percebi que ele ria timidamente, respirando fundo pelo cansaço da viagem e daquela mão de obra das bagagens, tentava aos poucos disfarçar, como se nada cansativo tivesse acontecido. Abafei sua risada com beijos e com minhas mãos deslizando em seus cabelos. O beijo foi ficando quente e intenso. Ele retribuiu com um ardor tão crescente que me causou um arrepio na espinha, o que me fez perder a capacidade de raciocinar por alguns segundos. Eu senti o toque dos seus dedos por debaixo da minha blusa em busca do meu seio, enquanto seus lábios, se soltando dos meus, murmuravam meu nome bem devagar. Em seguida, com uma urgência maior, deslizou a mão até o meio das minhas pernas. Eu senti que já estava úmida e fora de controle, pois, parte de mim, já sabia que ele era uma perdição irresistível. E então - meu Deus - rolamos ali mesmo pelo chão gelado da pequena varanda. Ele rapidamente desabotoou e puxou minha calça - que saiu com calcinha e tudo - quase como se eu nem notasse ele estava dentro de mim, e por um momento tudo se modificou: a minha respiração, a respiração dele, os nossos movimentos iniciais muito desajeitados, os nossos corações em disparada. O mundo parou. Eu senti a boca dele se abrindo contra a minha, ouvindo-o inspirar e espirar, enquanto o mundo de onde viemos se dividia em porções diminutas e insignificantes. Nesse momento ele se tornara uma única coisa, nós nos tornávamos um, e eu só sentia uma coisa que importava de verdade; o amor. O que se poderia fazer quanto a isso? Nossos olhos semicerrados, as vozes ficando roucas devido ao frio, o hálito quente no pescoço de ambos, as mãos percorrendo as costas sem saber ao certo onde parar devido as sensações que não conseguíamos controlar. O sangue fervilhava e eu apenas tentava absorver a sensação de estar totalmente dominada por ele. Fechei os olhos e inspirei o cheiro másculo do suor da testa dele, querendo me transportar para o paraíso. Ahhhh, esperei tanto tempo por um momento assim..  Falei baixinho: "Eu amo você, eu amo você..."
     Depois de uns bons minutos de prazer entramos para nos proteger do frio que apertava. Eu perguntei se seria melhor prepararmos um chá quente ou abrirmos aquela garrafa de vinho. Ele respondeu que deveríamos brindar com vinho o nosso amor e a primeira noite na pousada. Rapidamente já estávamos sentados na beirada da cama com taças cheias de vinho e petiscando quadradinhos de mussarela. Conversa solta sobre a vida e o que cada um já sabia ou imaginava do outro.
     Conforme fomos bebendo e completando as taças, a conversa foi tomando um rumo mais sério. Do nada Léo pergunta:
     - Sarah, como você se vê?
    -  Como eu me vejo? Que pergunta é essa? Acho que me vejo quase bêbada...
    - Sério.. Como você se situa nesse mundo?
    - Bem... Eu penso em mim como alguém que está em busca do queria ser. Eu fiz o que pude pela minha existência, sonhei com o diabo quando eu passava da fase de criança para a pré-adolescência e logo em seguida para adolescência - que parecia nunca acabar. Eu dizia para ele: "Se um dia você fizer de mim uma pessoa famosa e feliz, eu te darei alguma coisa de volta". Acho que ele me deu só a sexualidade e mais nada, talvez achando que seria suficiente para que eu alcançasse algum objetivo. Nesse mesmo tempo, às vezes, eu pensava coisas na escuridão, pensava em me matar, em me matar de verdade, por me sentir atraída por uma sexualidade que despertava em mim pensamentos estranhos que eu não entendia. Eu sentia como se visse imagens que fariam qualquer um vomitar... Eram diabos com tridentes em chamas e com pintos enormes balançando de baixo para cima, que iam tão alto que ultrapassavam os chifres e giravam no ar como chicotes... Algo não estava certo. Eu imaginava que se um dia eu perdesse o controle eu seria levada ao caos, ou a total ruína por causa disso.
    - Iria à ruína por causa da sexualidade e fantasias?
    - Eu achava... Eu me sentia como um animal na jaula pronto para sair e atacar o primeiro que aparecesse. Eu já sentia uma atração por sexo selvagem, bruto, porque seria a forma mais pura de entrega. Mas me reprimia. Estava dentro de mim e era isso, mas eu imaginava que talvez essa minha fúria despertasse na outra pessoa a vontade de me bater. Com o tempo aprendi que se duas pessoas consentem, é o que é, e pronto. Ninguém está forçando a nada. Se alguns tapas, cuspes, apertões e puxões de cabelo acontecem, é o que ambos estão querendo naquele momento em particular. Então... Se algumas pessoas se incomodam e são puritanas... Não façam. 
    - Nossa! Você pensa assim mesmo? Será efeito do vinho? Nunca vi você falando assim antes.
    - Não seja bobinho. Você e eu somos parecidos sexualmente. Nós pensamos da mesma forma, já percebi isso desde o começo. Nós gostamos de extrair algo inusitado um do outro, algo que não se pode ver ou medir. A maioria das pessoas, dos casais de qualquer idade, ficam excitados, fazem amor e vão cada um para sua casa, ou dormem lado a lado como se deixassem de ser casal logo após a transa. Mas nós não. Nós estamos dando algo nosso um ao outro. 
     Quando eu conheci você, vi que existia algo diferente, alguma coisa que eu poderia provocar e provar. Você já reparou que comigo nunca houve restrição para o que quisesse fazer? Quando nós transamos é sempre em alto nível e parece meio animalesco. Você, ao seu jeito, é bruto, másculo e me seduz. Você é muito mais que um pinto grande. E bota grande nisso! Quando penso em você a última coisa em que penso é no pinto. Não importa que seja bem dotado e já tenha sido admirado por causa disso antes de mim, nós estamos dez passos à frente de qualquer passado que já vivemos, justamente porque temos inteligência e perspicácia para entender nossas necessidades. Eu gosto de ser dominada e domada por você. 
     Para mim, submissão não é humilhação porque eu tenho visões pró-feministas. Como posso estar me humilhando, enquanto estou com você, se é o que eu quero sentir e se estou aproveitando? Se eu que quero fazer isso para nosso bem-estar, nunca é humilhante. Eu não quero ser humilhada. Quero apenas mostrar que sou mulher, que sou uma mulher forte. Preciso de um homem forte para fazer amor gostoso. Eu gosto que coma meu cu, apesar, com você, dói um pouco, mas eu adoro. Quero fazer isso, quero fazer aquilo, dar e receber prazer de todas as formas possíveis. Nada de fazer de conta ou  parecer bonita e recatada, quero poder praticar livremente posições de todos os jeitos e anal sem medo ou preconceito. Agindo assim e me aceitando como sou, você sempre fará de mim uma mulher empoderada. Acho que a única coisa que poderia me deixar insegura seria se a sua reação  fosse negativa - apesar de estar certa que na vida sempre haverá uma reação para tudo. 
     Eu sei muito bem que certas coisas não são socialmente aceitáveis. Se eu trepasse com vinte caras, me chamariam de puta, mas se um homem trepa com vinte garotas, ele é um garanhão.
     - Isso te preocupa?
     - Não, isso me faz querer você mais ainda.
     - Para provar algo?
     - Não, para mostrar todo o amor que sinto por você, e que a sociedade não dita regras para a minha vida. Eu traço meus limites e controlo meus desejos. Sei que não sou uma pessoa ruim. E pensar assim, e ser contra tudo o que é estabelecido, não significa que eu agiria irresponsavelmente só para demonstrar o quanto sou rebelde e contestadora. Cansei de ver e participar de falsidades e merdas só para estar dentro do contexto social, religioso e familiar. Não há nada de honesto nisso. Ninguém mais age como agíamos, não existe mais gente assim. As garotas que conheci na adolescência e que, assim como eu, hoje se tornaram mulheres maduras e mães, elas dizem o que e agem como? Algumas amigas com quem ainda mantenho contato me dizem: "Nós somos de outra época. Estamos fora do padrão atual". Elas não entendem que, independentemente da idade, nós ainda podemos ser desejadas e somos sexualmente muito mais fortes do que as mocinhas de hoje. Não pense que se trata de uma piada e nem uma teoria que mulheres da nossa geração são melhores porque são adeptas do sexo com amor, carinho e qualidade. 
     - Você se considera viciada ou dependente de sexo? Precisa disso com frequência para ficar calma?
     - Eu não me considero viciada em sexo. Por que eu seria viciada? Eu me considero normal, ainda que normal seja fantasiar fazendo um boquete com três ou quatro caras ao mesmo tempo numa viela escura. Os homens não fantasiam transar com duas ou três ao mesmo tempo? Não se imaginam numa suruba com vários casais, uns comendo os outros sem regras ou objeções? Então... Por que eu também não posso curtir minha fantasia de boquete com vários caras, ou de ser comida por um ou vários negões do basquete americano? 
    - Ah meu Deus!
    -  Léo... Não faz essa cara de quem está escandalizado e nunca ouviu ou pensou essas coisas. Você é tudo o que eu tenho nesse mundo. Às vezes é difícil ouvir você dizer: "Por que sua sexualidade é assim?". Ou a dificuldade que tem de tentar entender por que sou assim. Olha... Eu nasci assim. 
     - Poxaaaa, Sarah.... Nem tenho palavras... Eu sei e entendo que existem pessoas que são especiais. Pessoas que tem algo mais a desejar e oferecer, mas as que tem uma sexualidade tão exacerbada como a sua parecem vir de alguma situação motivadora do passado. E isso me preocupa.
     - Você está falando de abuso? Algo como estupro?
     - Não só isso, falo de tudo. Pode ser qualquer coisa. Pode até nem ser por algum estímulo sexual. Algum outro trauma...
     - Então tá... Vamos lá! Algo me aconteceu quando eu tinha de onze para doze anos, uns dois meses antes eu havia recebido a primeira "visitinha" da minha vida. Eu estava virando mulher. Nessa época nós morávamos numa pequena cidade do interior pela qual passava uma linha de trem.  Eu tinha que cruzar a linha do trem para chegar à escola. Cinco casas abaixo da nossa morava um casal de velhinhos, muito simpáticos e prestativos, para os quais minha mãe vendia Avon. Eles beiravam os 65 anos, com duas filhas adultas casadas e netos. Era muita gente que morava ali naquele quintal. O senhorzinho trabalhava como funcionário da empresa ferroviária. Ele ficava numa guarita. Quando o trem vinha ele usava um apito e abaixava a cancela para impedir a passagem de veículos e pessoas. Eu estudava de tarde e ia para escola todos os dias, por volta do meio-dia e meia. Um dia a esposa dele me pediu se eu poderia levar a marmita com o almoço dele, porque as filhas não estavam e ela olhava os netos bebês. Chegando lá, eu entreguei a marmita ao velho e ele me olhou diferente, de um modo como nunca tinha me olhado quando eu estava com minha mãe. Pediu que eu esperasse um pouco, ele ia me dar um trocado como forma de agradecimento - era para que eu comprasse algum doce - disse ele. Segui meu caminho. No dia seguinte a mulher dele novamente perguntou se eu podia levar o almoço. Aceitei, já imaginando os trocados que receberia. Chegando na guarita ele sugeriu que eu entrasse e sentasse no banquinho de madeira. No mesmo instante em que ele vasculhava o bolso do jaleco em busca de alguns trocados, ficou de pé bem perto de mim, quase encostando. Pude reparar que um volume crescia embaixo das calças. Ele, reparando que eu olhava timidamente, mas com surpresa e curiosidade, pediu que eu esticasse a mão. Em vez de colocar as moedas, ele encostou a palma da minha mão em cima da braguilha e segurou firme para que eu não tirasse rápido. A guarita tinha duas janelas laterais. Ele rapidamente, com uma das mãos, fechou uma delas e com a outra desabotoou a braguilha.  Vi saltar aquele membro enorme e latejante, com veias pulsando em destaque como se fosse sei lá o que. Era grosso, comprido, cabeça muito grande. Ele pediu que eu continuasse ali sentada e pegasse com as duas mãos massageando para frente e para trás. Era quente. Muito quente mesmo. Não era pegajoso e nem mal cheiroso. Então, ele pediu que eu colocasse só um pouquinho na boca. Eu relutei. Ele botou a mão na minha nuca e segurou em meus cabelos, puxando meu rosto para mais perto daquela coisa enorme. Atendi. Notei que ele fechava e abria os olhos e tremia as pernas cada vez que eu passava a língua pelo orifício do pau. Olha... O pau dele era tão grande e gordo que não cabia direito na minha boca, estou falando só da cabeça. Ele então usou de nova tática: passou o dedo indicador por debaixo da minha saia azul marinho e esticou o elástico da calcinha com o dedo, até sentir que eu estava toda molhada. Passou suavemente a ponta do dedo naquele meladinho e trouxe à boca. Ele lambia os dedos como uma criança que se lambe depois de enfiar a mão na massa de bolo. Em poucos minutos consegui me desvencilhar e saí calada em direção à escola. No dia seguinte a mesma coisa, na semana seguinte foram pelo menos mais duas ou três vezes. Tudo igual como da primeira vez. Eu me sentia bem com aquilo. Um belo dia, indo à escola, notei a guarita fechada e vazia. Voltei à casa dele e havia muita gente do portão para dentro... Perguntei do velho a um desconhecido parado na porta. Ele respondeu que o senhorzinho havia sofrido um ataque cardíaco fulminante na noite anterior, o enterro seria naquele mesmo dia às 16h. É isso. O velhinho do pau igual ao seu se foi...
    - Ufa... Estou novamente sem saber o que dizer. Nunca imaginei...  
    - Não tenho vergonha de falar essas coisas para você. Atualmente, no meu dia a dia, eu procuro ser forte e independente para levar minha vida numa boa. E quando nos encontramos e transamos eu quero entregar meu ser a você de corpo e alma; sempre repetindo em pensamento: "Tome, assuma o poder!". "Assuma a situação para que eu possa relaxar e gozar com a nossa transa perfeita"!
      É um prazer quando estou submissa, sabendo que posso entregar o controle do mundo que me cerca todos os dias para outra pessoa, a você. Então, no momento que transamos, eu me sinto totalmente livre do peso que carrego. 
     Na minha vida sempre foi muito raro encontrar um homem que tivesse uma mente mais forte que a minha - o que sempre necessitei para poder entregar o poder a essa pessoa. Então encontrei você, Léo, minha vida, meu docinho.
     - Assim você me faz rir. Saiba que você também é super importante para mim. Mas agora eu gostaria que me explicasse uma coisa: "O que de verdade se passa em sua cabeça? Por que sempre dificultou tanto as coisas para mim e para si mesma, dizendo: "Quero que faça assim, esse é o jeito que eu gosto. Quando eu atendia, você dizia não querer mais, porque ainda não estava estimulada o suficiente?".
    - Era para deixar você mais bravo. Eu queria ouvir de você a frase: "Fico com mais tesão quando você dificulta as coisas". 
    - Putz... Você estava usando psicologia comigo? Você sempre joga com o psicológico das pessoas para atingir seus objetivos?
    - É... Talvez... Mas nunca entreguei o poder como faço com você. Para ninguém. Nunca!
    - E na vida fora do aspecto sexual, já entregou?
    - Na vida sim. Mas o submisso sempre tem o poder, porque ele ou ela sempre está recebendo o que quer. 
    - Então quer dizer que eu sempre fui criticado por você por ter uma postura de machão, que transa forte, dá umas palmadas no bumbum e tem uma pegada poderosa, e, no fim, eu sou apenas um escravo?
     - Sim, esse é o real da coisa, é a verdade. Os homens sempre acabam como escravos das mulheres que conseguem fazer o jogo do faz de conta, ou que estão aceitando tudo. Mas é apenas uma representação. 
     - Não sei. Quando penso nisso concordo em parte. Acho que cada novo relacionamento traz um sinônimo de mudança na vida da pessoa. E mudança significa que está expandindo a mente e os horizontes. A pessoa que não tem medo de mudar, não tem medo da vida como ela é. Uma vida cheia de novas oportunidades e aprendizados. Talvez algo em você esteja tão reprimido que não consegue ver que, para a vida mostrar diferentes facetas da personalidade, que vão além da simples submissão ou do jogo de interesses egoístas, precisa-se de algo bom e admiração, essenciais ao crescimento como ser humano. Alguns vêem assim, outros não. Talvez você não consiga enxergar porque não teve a mesma orientação que eu tive.
    - Meu bem, acontece que eu nasci mulher. Eu jamais teria a mesma orientação de um homem.
    - Sarah, presta atenção. Você tem a cabeça muito fechada. 
   - Eu tenho a cabeça fechada por não aceitar regras que impõe diferenças e privilégios aos homens? Você é que tem a cabeça fechada pensando e agindo com um tipo de machismo idiota. Raciocina direitinho, sem preconceitos. Você é como eu. No entanto, isso não faz de você uma pessoa ruim só porque pensa e gosta das coisas do seu próprio jeito. Mas, às vezes, é bom ver as ações que faz e  as que recebe, enxergar por outros ângulos e com outro espírito de liberdade. É justamente isso que nos torna diferentes, unindo ou separando ou, melhor, somando conhecimentos. E não significa que por que gosto de transar de um jeito só meu, que, por isso, serei egoísta de nem me importar com o prazer do meu parceiro. Eu sempre me doei ao máximo, mesmo quando pareci uma idiota assustando quem estava comigo. Minha sexualidade sempre foi intensa.  Desde pequena já me causava uma vontade doida de me masturbar quando via um beijo intenso e apaixonado num filme ou numa novela na tv. Eu sou assim, meu bem...


                                                                                                                                                                                                                                    Continua... 

terça-feira, 4 de setembro de 2018

O Pecado Capital Parte 10

                                        EPISÓDIO 10 (VICISSITUDE)    

   No momento seguinte do meu pensamento recuo no tempo, retorno até uma cena anterior no começo do relacionamento com o Léo.
    Essa situação foi no Shopping Center norte em São Paulo - em nossa passagem por lá para comprar uma calça jeans para ele. Era uma época que eu acreditava que seria possível esquecê-lo se começasse a me interessar por outra pessoa - já que ele dava toda demonstração que não estava interessado em fazer planos para o futuro.

    Eu ainda não tinha a receita certa de como iria tirá-lo de vez do meu pensamento. Por isso, inventava algumas realidades forçadas e matraqueava sem parar em nossos encontros, era um discurso enfático de orgulho ferido, e com  intuito de exorcizar por completo todos os meus medos e fragilidades – ou, quem sabe, pela insegurança da perda quando ele considerasse a nossa relação muito previsível, imaginando que logo eu voltasse a falar de planos para o futuro.  
   Porém, cada vez que a discussão terminava logo tudo recomeçava do zero. Com o passar dos meses sempre pudemos voltar a nos entender numa boa. A vida, com toda sua grandeza e generosidade, ia se ajustando.
   
    Bem... Com um pouco mais de 1 ano que tínhamos nos conhecido eu já estava aflita – tinha me apaixonado pelo seu jeitinho e queria ter me casado com ele com seis meses de namoro.
     Era o começo do inverno e acho que esse tempo nos marcou bem mais por todos os passeios que fizemos juntos – sempre achei o final do outono / começo do inverno muito mágico e colorido embalado pelas festas juninas que frequentávamos.

      Nós éramos tão carentes e a beleza da natureza, somada aos adornos festivos, trazia brilho aos nossos olhos nos passeios que fazíamos com o pouquinho de dinheiro disponível. E, por isso, talvez, escolhemos a forma errada de atravessar a vida buscando avidamente tábuas de salvação afetiva ou distrações, sem nos preocuparmos em planos para o futuro. O afeto tem como preço o apego. Isso é inquestionável e fatal. 
      Na maior parte daqueles momentos eu sonhava com outra espécie de relação; um tipo de ternura livre e leve, aceitando a posição dele sem comprometimento total, mas mantendo meu ideal que no futuro próximo seria esposa e mãe. Mas todos sabem que essas não são as premissas de uma relação verdadeira quando a sintonia é diferente. Desta forma, alguém sempre acaba prisioneiro de um sonho que parece impossível ou de uma realidade injusta.  
     No fundo, nunca somos livres para ser o que somos ou dizer abertamente o que se deseja do outro sem que ele se sinta contra a parede ou o relacionamento entre numa faixa de desgaste - situação que eu evitava e tinha medo.
     Essas lembranças e conclusões dos fatos - ou outras ainda menores - somadas me parecem maiores do que conseguiria suportar naquela época, ou superar com o tempo, se não fosse eu uma mulher forte. O que me restou a fazer foi apenas aquilo que fiz: seguir aqueles passos rápidos sem olhar para o chão e muito menos para trás, até ter ficado exausta e sem palavras diante dos diálogos que mantínhamos.

       Uma cena de revelação:

   - Sabe de uma coisa Sarah? É muito difícil começar esse assunto, mas tem algo que me incomoda há tempos...
   - Se incomoda, então diga de uma vez, meu amor.
  - Bem... Estive lendo um livro que tinha a seguinte frase: “As famílias mais felizes são as que se conhecem mal”. Pensei imediatamente na sua situação.
   - Na minha situação? – meu olhar de indignação e surpresa.
   - Então... Nós já podemos imaginar o tanto de verdade que existe na frase. Várias vezes você me falou da sua falta de sintonia com os outros da sua família.
  - Tá... E daí?
  - Estou querendo dizer que sintonia não tem a ver com proximidade ou consideração. Sintonia é outra coisa, entende?
  - Não! Ainda não estou entendendo o porquê deste assunto.
  - Sintonia, por exemplo, é esse elo que criamos entre nós dois. E você me cobra o tempo todo por achar que já temos o conhecimento e sintonia suficientes para nos casarmos.
  - Hum.. Sim. Eu penso isso mesmo! E?
 - Certa vez, logo nos primeiros dias do nosso namoro, você me disse que quando era mais nova tinha medo de casamento, lembra disso?
 - Sim, claro que me lembro, ainda não estou com Alzheimer.
 - Você me contou que já havia namorado e a sensação era de arrepios quando o assunto era casamento. Reforçou que vivia dia e noite com dores de cabeça só de imaginar como seria constituir família – que, na sua visão, ter filhos, educá-los e orientá-los para a vida era o ponto máximo ao qual uma mulher poderia chegar. Você não queria isso. – Pois, ao final, com o passar do tempo, se tornaria escrava de uma situação difícil de mudar com marido e filhos folgados; engordaria e o marido perderia o interesse e os filhos seriam ingratos.
 - Tá. Pensei, falei... E daí? Eu era uma adolescente insegura que não tinha noção da vida. Por que está voltando com isso?
 - É que eu queria me aprofundar um pouco mais nesse assunto. Imagino que talvez você agora culpe o seu pai por ter orientado vocês com uma educação tradicional. Acho que agindo assim ele provocou em você um nível elevado de necessidade em cumprir o programado – o que agora a impulsiona a querer se unir definitivamente a alguém. Também acho que o fato do casamento dos seus pais ter dado tão certo se tornou um peso para você e sua irmã.
 - E o que você tem a ver com isso? Agora resolveu cuidar da vida dos meus pais? O meu problema não é e nunca será eles. O problema é minha vida e meus objetivos que você não me ajuda a realizar!
   - Não seja grossa. Não acredito que eu seja seu problema. Veja bem: faz tempo que estou tentando entender alguns porquês. Já que estou envolvido emocionalmente com você, preciso de respostas para ter uma ideia de como será nosso futuro juntos. Olha só uma coisa, vou falar bem a verdade: acho que você sempre levou uma vida egoísta e de rebeldia mascarando a realidade conforme sua conveniência, e acabou estragando pouco a pouco todas as pessoas com quem convive. A sua simpatia nunca foi sincera por ninguém, por isso nem conseguiu se dar bem nos estudos. Acho que esse jeito de ser criou um grande pânico em você - a imagem e a necessidade do casamento perfeito está bloqueando a sua vida amorosa.
   - Não estou gostando... Acho melhor a gente mudar de assunto. Não quero mais conversar sobre isso. Você acha que me conhece, mas nem imagina o que se passa na minha cabeça.
   - Precisamos conversar. Uma relação sem conversa não é relação.
   - Podemos falar de outras coisas? - já com a minha paciência no limite.
   - Vamos terminar esse assunto e depois a gente fala de outras coisas e em seguida vamos comprar a calça conforme combinamos.
   - Não vamos mais a lugar algum! Quero ir embora. Pode me acompanhar em silêncio até o carro ou terei de voltar para casa de ônibus?
   - Você escolhe, pode ir embora comigo ou de ônibus, mas antes vai me ouvir. Presta atenção: olha aqui! Eu acho que você deveria ter percebido que esse meio de perfeição o qual deseja não existe e nunca existirá. É tudo aparência. Acho que o entendimento, até meio inconsciente, da situação começa a ter efeitos danosos na sua compreensão do que é casamento. Você não consegue aceitar que nunca aparecerá alguém perfeito em sua vida ou que o amor não lhe cause um tipo de dependência - embora, eu imagino, nunca tenha conhecido alguém que vivesse de outra forma que não fosse de depender emocionalmente de outro alguém. Você luta todo o tempo a favor e contra seus próprios desejos e incoerências. 
     É assim que você se mostra a mim, uma mulher capaz de desejar um relacionamento e se envolver até um determinado ponto, mas na hora H me culpa ou alega qualquer motivo que só para você faz sentido. Esse e tantos outros raciocínios que eu tenho denotam a sua índole insegura e egoísta. Você é alguém que nunca sabe o que quer, mas que no discurso se mostra forte e cheia de razões lógicas porque se diz injustiçada por tudo e todos. Não é assim que se define? Você vive tão perdida em dúvidas que nem se importa do mal que causa em quem a ama. Lembre-se de uma coisa: o encanto de uma pessoa está em sua personalidade sólida e em fundamentos dignos. Acho que você não tem nenhuma destas qualidades, pois se tivesse não faria a proposta de nos “ casarmos” – só porque um dia parou diante do espelho e se sentiu velha ou imaginou que nos daríamos bem por que sou uma pessoa calma. Quando um dia eu tive a ilusão que algo interessante poderia acontecer conosco, e pensei em aceitar o desafio, aí já imaginei que você diria que não queria mais porque estava em dúvida ou porque não temos dinheiro para casar.                        
     Gostaria, de verdade, que parasse com a palhaçada de colocar culpa em mim. Fui claro? Você me deixa muito puto com esse comportamento. Eu nunca vou conseguir acreditar numa vírgula do que diz se continuar agindo assim.

     Achei que a conversa já tinha dado e me levantei abruptamente, empurrei a cadeira, peguei a bolsa e saí esbravejando:
    - Cansei de você! Não quero mais! Não me ligue mais. Não me procure mais! Não apareça nunca mais na minha frente. Tchau, Léo.
    Fui embora pisando duro e em direção ao ponto de ônibus para voltar para casa com os olhos cheios de lágrimas.

    Uma semana depois...

     - Deixa eu ver. Acho que não tenho nada para comer aqui na bolsa. Serve manteiga de cacau para passar nos lábios?
      Emendei fazendo cara de decepção: - Puxa vida, que pena. As coisas que me pediu para comprar estão lá no porta-malas e não dá para pegar agora.
    - Trouxe tudo que pedi?
    - Aquela lista enorme? Trouxe sim. Não sei por que, mas estou com a sensação que esqueci alguma coisa. Mais tarde eu lembrarei o que é. Ainda falta muito para chegar? Estou com vontade de fazer xixi.
    - Acho que mais uns dez ou quinze quilômetros estaremos lá. Estou vendo um posto de gasolina, parece que tem restaurante, vamos parar para ir ao banheiro e aproveitar para matar a fome.
    - Tá bom. Acho melhor mesmo.
     Léo parou o carro numa vaga próxima à entrada. Fomos a passos rápidos, porém abraçadinhos, mas a posição dos braços parecia meio incomoda para ambos.
   - Vamos andar de mãos dadas por que abraçados não acertamos o passo. Parece que a nossa diferença de altura atrapalha um pouco. Eu tenho 1.85m e você deve ter mais ou menos 1.55m, não é?
   Eu dei um meio-sorriso e respondi com voz irônica:
   - Vamos dizer que tenho 1.60m –  dei risadinhas tímidas no final.
     - Ah sei lá. Se não tem isso está bem perto. Devem ser essas botas com saltos baixos que não ajudam muito. 
     Adoro esse jeito da sua calça jeans por dentro do cano. Acho que fica muito bem em você. Escolheu certinho como me seduzir. Como dizem lá no interior: "ornou e deu mais formosura pra sua belezura". Falando sério agora: deu, assim, - como vou dizer? - um porte diferente, uma elegância que impõe respeito e deixa você mais jovem. Aliás, uma mulher com sua postura nem precisa muito para impor respeito.
  - Já me disseram isso. 
  - Disseram o que? Que impõe respeito ou que fica bem de botas?
  - As duas coisas.
  - Sei, sei. – Ele deu um sorriso amarelo, com um “Q” de decepção, e levou na esportiva. Percebi que quase esboçou um sorriso de canto de boca do meu jeito humorístico.
     Um para direita e o outro para esquerda, nos separamos para ida ao toalete e apontamos o lugar do encontro na saída. Depois de alguns minutos estávamos num hall com mesas, poltronas e alguns folhetos anunciado ofertas. Caminhamos um pouco e nos aproximamos do balcão para fazer o pedido. Eu perguntei:
     - O que você vai comer? Aquelas coxinhas parecem deliciosas.
     - Não quero nada.
     - Tem certeza? Não sentiu fome por dirigir tantas horas?
     - Não. Eu comi alguma coisa antes de sair de casa. Faz assim: escolhe você que eu vou pensar.
     - Tá certo – respondi tomada de algum desânimo porque não gosto de comer sozinha.
    Pedi ao atendente café com leite médio e um copo de pão de queijo. Voltei o olhar e perguntei:
    - Tem certeza que não quer nada? – ele titubeou um pouco e respondeu que tinha mudado de ideia – o que me animou bastante:
    - Pode pedir igual ao seu - falou com indecisão.
    - Pão de queijo, café com leite? – coloquei uma dúvida quanto ao seu gosto ser igual ao meu.
    - Sim. Pode ser.
    - Açúcar ou adoçante?
    - Pode ser aquele adoçante líquido - apontou para o frasco numa cestinha de palha sobre o balcão. 
    O atendente nos trouxe o pedido e continuamos uma conversa rasa entrecortada pelo olhar curioso ao ambiente com diversidade de pães, pedaços de bolo, salgados, doces e guloseimas - pelas quais tive que me conter por que já me sentia acima do peso. E do lado oposto ao balcão do restaurante uma exposição de largos cadeirões em madeira, redes de balanço e esculturas talhadas em pedaço de tronco de árvore. Chamei sua atenção para um quadro grande com a imagem de um saxofone solitário. Ele falou:
     - Tenho um primo músico. Ele toca alguns instrumentos e gosta de saxofone. Vive ensaiando lá no quartinho dos fundos da casa do meu tio.
    - Sério? Que tipo de música ele toca?
    - Não sei, eu vou pouco lá. Quando eu ia tinha que me acostumar a ouvir os ensaios em que ele repetia várias vezes o mesmo trecho de música dos Beatles. Devia ser uma tortura para a família ouvir todos os dias aqueles ensaios.
    - Eu gosto de saxofone, mas não tive um e nem sei tocar nenhum instrumento. Acho sexy quem toca.
    - Caracas! E por que você nunca se interessou em aprender música?
    -  Foi por que demorei a escolher o que queria estudar e acabei ficando fora da escola ao terminar o colegial.
    - Você é muito inteligente. Poderia ter ido adiante.
    - Pois é, dizem que sou. A minha família é de gente inteligente, assim diz minha irmã.
    - Então... Estou notando que ela tem razão... Também cheguei a pensar em desistir um dia - ele falou com certa nostalgia. Mas a frase pareceu ter duplo sentido.
     - Vamos voltar para o carro para não chegarmos muito tarde?
     - Sim, sim. Vamos.
     Entramos e nos acomodamos no veículo.  Ele colocou um CD para tocar. Era a música Brown Eyed Girl de Van Morrison. Então me olhou com admiração e comentou:
      - Que coincidência, você tem olhos castanhos como diz a música. 
        Dei um sorriso e respondi:
     - Você tem bom gosto. Eu já a ouvi no rádio. É uma música bem bonita.
     - Se gostou feche os olhos que vou aumentar o som. Sinta a música passando por seus ouvidos chegando rápido lá dentro da cabeça. Sinta profundo. Respire fundo. Isso! Magnifico! Você está indo muito bem. Continue sem abrir os olhos.
     - Nunca ninguém tinha me mandado ouvir a música assim num carro - quase gritando para que ele me ouvisse e ele gritou também. 
     - Isso, isso. Não saia da concentração. Continue imaginando. É uma "viagem" que está fazendo através da música - Eu sorri assim, daquele jeito de alguém que quer dizer sim mas não diz nada.
      Quatro minutos depois...
  - Gostei. Vou refletir depois sobre essa experiência.
  - Eu, na maioria das vezes, fecho os olhos quando a música me atrai, mas nunca faço isso quando estou à noite numa estrada perigosa dirigindo a 100 quilômetros por hora - ele sorriu sarcasticamente. 
   - Ahhh Léo, eu acho que não existe música feia quando a gente entende o sentido da criação ou quando criamos um sentido especial para ela - arrematei o assunto buscando uma frase de efeito para me mostrar entendida.
  - É verdade. Acho que você que é especial. Você fala coisas muito interessantes que fazem a gente pensar depois - ficam guardadas e voltam quando menos a gente espera. Por isso resolvi convidá-la para essa viagem. Acho que também estou gostando muito de você, muito além do que eu mesmo gostaria que fosse.
  - Isso é uma declaração de amor? - ri e dei uma pausa para arrematar - Pode crer que além de pensar no que eu digo, você também lembrará do que estamos fazendo de diferente. Esse tipo de situação deixa recordação. O quanto isso vai mexer com a gente só saberemos depois, muito tempo depois, talvez em anos. 
    Olha só, estamos chegando. Veja lá a placa na estrada. Estamos bem perto agora. Indica que temos que pegar a outra rodovia `a esquerda - sentido Campinas - no segundo acesso.
  - Ainda bem que acertamos o caminho. Agora só falta achar a pousada. Eu sei que é numa rua de terra que margeia a rodovia Dom Pedro I perto do km 80 ou 81.
  - Vamos tentar encontrar, se não acharmos eu ligarei para o telefone que consta no voucher.

                                

                                                                                                                              Continua...




terça-feira, 28 de agosto de 2018

O Pecado Capital Parte 09

                                           Episódio 9 (Remorso)  

     Certa vez vi uma citação que dizia algo assim: “Há um mundo de luz, no qual tudo é claro e manifesto, e há um mundo de confusão, onde tudo é sombrio e obscuro”. 
    Em muitos aspectos minha vida se assemelha a isso, porque descobri que esses dois mundos são verdadeiramente um só. 
    Por minha única escolha insisto nesse mundo e corro atrás. 
    Não sei e nem entendo por qual motivo, deu vontade de ligar para minha irmã, apesar da certeza que ela não atenderá. 
    Queria muito fazer uma surpresa numa grande demonstração de carinho com palavras dóceis e sorrisos - mesmo sendo via telefone celular ou whatsapp - reconhecendo que ela nunca teve qualquer senso de humor e muito menos imaginação para retribuir um agrado meu nos últimos anos que moramos juntas. Mas que deu vontade, isso deu mesmo!

     É engraçado como ela constantemente se mostrava tomada pelos conhecimentos que carregava desde os tempos da faculdade, e vivia orgulhosamente se mantendo numa visão fechada e com toda a atenção voltada para um ponto qualquer no vazio. Ela balançava a cabeça quando concordava com alguma coisa e olhava fixamente para o alto quando tinha dúvida; mas nunca diretamente nos olhos do interlocutor. Às vezes, quando parávamos para conversar, eu tinha a impressão que ela me considerava uma completa ignorante, como sendo alguém muito inferior aos seus conhecimentos, já que não tive o mesmo apoio dos nossos pais para o estudo. Primeiro: por eu ser 7 anos mais nova, e segundo: por estarem praticamente quebrados financeiramente no último ano de faculdade dela. 

Reconheço que eu demonstrava certo embaraço e um pouquinho de inveja quando ela começava a expor as virtudes de seus conhecimentos na formação em biomedicina. 
     Ela modulava o tom de voz de um segundo para outro até elencar todas as evoluções que obteve na carreira no decorrer dos anos e no seu cargo de chefia no laboratório de microbiologia. O que mais me irritava que ela fazia questão de viver ressaltando que nossa família era de prodigiosos pesquisadores do começo do século 20, imigrantes europeus, um tipo de gente extremamente diferenciada e evoluída culturalmente. Ela se orgulhava disso! 
     De tempos em tempos repita a história para quem quisesse ouvir, que nossos consanguíneos trabalhavam para o governo italiano e teriam feito descobertas extraordinárias em favor do avanço cientifico e tecnológico desde 1910 até 1930 e também várias inovações no campo da ciência relacionado com radiologia, mas tiveram que fugir da Itália rumo ao Brasil antes de estourar a segunda guerra mundial. Com Benito Mussolini ampliando severamente a perseguição aos lideres de sindicatos e intelectuais que não concordavam com o regime fascista seria suicídio continuar por lá. Dizia ela com orgulho e nariz empinado. Ressaltava ao final que nosso tio-avô virou nome de uma pequena rua no bairro da casa verde.

    Naquele tempo eu queria tanto que ela fosse capaz de parar de falar de si mesma e dos nossos antepassados por um instante, que falasse de nós, somente de nós duas. Afinal de contas ela já estava perto de completar 30 e eu já com 23, e eu na defensiva, sem um diploma de faculdade. Mas ela tinha um jogo de cintura surpreendente e mesmo que eu soubesse do jeito dela de se gabar jamais senti antipatia. 
     De um modo como nunca consegui explicar, eu entendia o tipo de amor meio distante que ela tinha pela união da família, e por ter personalidade forte raramente expunha suas verdadeiras opiniões para evitar conflitos. Ela tinha o tino de agir na hora e na medida exata da nossa necessidade, passando a segurança de que se algo errado acontecesse em nosso lar, com nosso pai ou nossa mãe, era ao lado dela que eu iria ficar. Eu tinha, desde muito pequena, a verdadeira sensação que ela nunca me abandonaria. 

     Quando fico assim lembrando volto mais no tempo, lá pelos meus 12 ou 13 anos, quando eu ainda estava envolvida numa sensação de algo lúdico e poético com a vida, ficava de canto admirando a teimosia que ela tinha de estudar para ser alguém na vida, tarde da noite cochilando em cima da escrivaninha, quase caindo da cadeira e vivendo dia e noite debruçada sobre os livros, o que fazia manter olheiras enormes e a espinha meio curvada. Eu achava graça daquele esforço. Eu me sentia moderna demais para me associar a um tipo de comportamento de isolamento que abrisse mão da diversão ou da liberdade de adolescente. Ao perceber isso, meu pai chamou minha atenção, disse que eu viveria para sempre uma vida de fracassos, caso continuasse agindo assim e sendo tão desinteressada e desleixada com os estudos. Portanto, a mensagem que ficou para mim, desde aqueles tempos, foi a de que eu passaria a vida inteira sofrendo questionamentos, desafios e afrontas da família até que encontrasse meu próprio rumo.
    
     Assim fui crescendo embalada pelos simbolismos e significados dessa poderosa realidade e da segurança que meu pai e ela transmitiam. 
    Ela suspirava quietude e determinação, pois era a pessoa da casa que tinha o maior salário - isso alguns anos depois que meu pai, desempregado, aceitou um emprego pior, bem abaixo da sua qualificação, porque já havia torrado todas as economias , por dois anos e meio ou mais, no qual vivia de fazer bicos. 
     Creio que tudo isso é que motivou a minha natureza insegura, inconstante e alucinada. Uma natureza que passou por dois mundos distintos.

     Sinto uma reação psíquica estranha quando as lembranças ficam mais fortes; logo vem um sentimento que se perde num turbilhão de mensagens subliminares que ela me envia em pensamento para que eu tenha essa vontade de comunicação. Ela sempre soube que nunca tive nada grandioso para contar e que esse meu desânimo tem significação, já que não sei se me sinto imatura ou senil diante das circunstâncias que envolvem a mim e ao Gustavo nesse quarto de hotel. 
    Eu me vejo aqui agora praticamente do mesmo jeito quando estava em pé no quarto da gente, e penso o quanto tive de sorte por ter passado todos os meus melhores anos dormindo ao lado dela. Ela me ouviu roncar ou acordando gritando de um pesadelo no meio da madrugada. Ela me acalmava e sorria enquanto eu virava para o outro canto. Ela conhecia meus defeitos e meus temores e sabia que sem ela eu não dormia bem. Sem ela, eu me mexia e me revirava na cama ficando com os olhos arregalados a maior parte da noite observando as sombras dançando no teto. 
    Hoje tudo isso faz muito sentido para mim. 
   
     Quando lembro do rosto dela, um rosto que talvez eu conhecesse melhor que o meu próprio, eu sei que para ela, eu era igualmente ou até mais importante. E isso significa mais para mim do que eu seria capaz de explicar a qualquer pessoa que perguntasse sobre ela. 
     Em breve esses momentos que vivo aqui ao lado do Gustavo vão passar. Eu sei disso. Ela não. Ela continuará com suas regras e eu com as minhas. 
     Quando tive minha primeira desilusão amorosa ela estava ao meu lado e trouxe um livro de Carlos Drummond de Andrade que continha uma marcação numa página. Ela, imaginando que eu fosse gostar, pediu que eu abrisse e lesse em voz alta o poema que ali estava e que dizia:
   
O amor antigo vive de si mesmo, 
Não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
Mas do destino vão nega a sentença.
O amor antigo tem raízes fundas,
Feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
E por estas suplanta a natureza.
Se em toda parte o tempo desmorona
Aquilo que foi grande e deslumbrante,
O antigo amor, porém, nunca fenece
E a cada dia surge mais amante.
Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
E resplandece no seu canto obscuro,
Tanto mais velho quanto mais amor.

     Eu chorei. Não foram apenas os versos que me deixaram emocionada, era tudo junto. Eu nem tentava entender, não queria, porque o poema não tinha sido escrito para ser entendido. Ele estava ali apenas para me inspirar e me fazer crer em algo maior. Talvez no todo, na união que é a soma das partes. 
     Fui em direção a ela e me sentei na cadeira ao lado da cama. Segurei a mão dela que era macia, frágil e comprida. A sensação era boa. Ela reagiu se contraindo um pouco e deixou o polegar afagando suavemente minha mão. Ficamos ali sentadas em silêncio até que meu mundo começou a rodar em círculos, e eu senti o braço dela apertando com força o meu. Em seguida vieram inspirações e expirações, ora profundas, ora mais calmas, e houve um momento em que ela sussurrou: "Calma. Vai passar!". 

     A imagem dela se esvaiu como fumaça no ar e volto ao real...

     Eu dou um "stop" e passo meu olhar em Gustavo. Ele dorme como um bebê. Eu sonho mil sonhos com ele, embora sabendo que não devia fazer isso. 
      Eu me abaixo um pouco, estico o braço e toco suavemente seu rosto. Acaricio seus cabelos, e quase perco o ar como na ocasião do poema. 
     Eu sinto um leve espanto misturado com admiração, como uma pianista tocando pela primeira vez o bolero de Ravel. 
     Eu lamento minha loucura porque sei que sou impulsiva e fraca, eu sei sim, mas sinto uma vontade incrível de tentar algo ousado com ele. 
     Eu me inclino mais e aproximo nossos rostos, os meus lábios tocam os dele, sinto um formigamento, mas não recuo. Subitamente acontece um milagre, porque descubro um paraíso oculto, inalterado e praticamente esquecido durante todo esse tempo em que estive refletindo. E quando minha língua entra na boca dele eu me permito deslizar, fecho os olhos e me torno poderosa. Com gestos suaves contorno seu rosto com a pontinha do meu dedo e depois toco a mão dele de relance. 
     Eu não tenho como conter as lágrimas enquanto começo a deslizar novamente para o próprio céu. Eu travo uma batalha comigo mesma, que no final exige que tenha minhas duas mãos livres para mover um peso que parece uma tonelada. 
     Continuo agindo como uma tola, uma mulher apaixonada, uma sonhadora cujo único sonho é reencontrar Léo e abraçá-lo o mais forte possível. 
     Sou uma pecadora com muitas faltas e poucas penitências, sou alguém que acredita em magia, mas já me sinto velha demais para mudar meu jeito e velha ainda para dar a miníma para qualquer coisa.

     O meu coração agora bate de um jeito estranho dentro do peito. Meu corpo está fraco, minhas pernas cambaleiam e meus olhos enxergam tudo embaçado. 
     Praticamente me sinto esquecida para sempre.

    Mãe, pai, minha querida irmã Solange, onde estão vocês agora? 
    O meu olhar novamente se perde no infinito. 
    Sinto-me tão nua e descalça, tanto quanto na hora do meu nascimento. 
    As pedras no caminho ferem a minha carne até sangrar. 
    O meu espírito foi envenenado até a morte. 
    Pai, mãe, Solange, onde estão vocês? 
    Caminho novamente pelo chão do quarto com os braços totalmente largados. O pensamento voa alto, até o infinito. Os olhos buscam uma resposta. Léo, Léo. Por que tem que ser assim? Em algum momento fui falsa com você? Você sabia que estava criando em mim rancores e ressentimentos? Responda-me! 
     Saiba que a minha alma está tão machucada e chora por dentro. 
    Não sei como que você conseguiu tocar tão profundamente o meu coração. Só sei que foi uma sensação boa e inusitada desde o primeiro dia..
     
     Onde foi parar tudo aquilo? Responda!
     Ouço alguém tocando piano. São acordes fortes e impactantes acompanhados de saxofone. As vozes não saem da minha cabeça. Ela dói tanto... Lateja... Léo onde está você? Por que agiu assim comigo? 
     Meu pai queria tanto que eu fosse alguém grande na vida, mas eu queria apenas ser sua e esperei que algo bom acontecesse. 
     Mas foi apenas uma mentira sem fim. 
     Eu nunca soube quando o sofrimento poderia chegar ou o peso que poderia carregar. Nunca imaginei que ele tivesse forma ou conteúdo. 
    Sei muito bem que a vida toda nadei contra a corrente, mas não contava que tantos infortúnios prevalecessem assim. 
    Pensei tanto que meu comportamento pudesse me proteger. Ou que finalmente a fuga da minha vida, do meu lar e da minha família, fosse suficiente para deixar de lado o que ameaçasse a paz. 
    Para onde está me levando a minha fraqueza agora? 
    Estou aprendendo da pior forma que não há lugar escondido no mundo onde coisas ruins não possam me encontrar.

     Minha mãe... Meu pai... Onde foram parar as lições que me ensinaram? Onde foi parar o escudo protetor que me mostraram como carregar? 
     A melodia mudou e martela na minha cabeça até estourar os miolos. 
     Por que alguém toca piano tão alto? 
     Mãe? Por que você sempre tocou tão bem as notas da vida? Como soube mudar de ritmo com tanta leveza? 
     Estou chamando, venha! Você consegue me ouvir? 
     Pai... Pai... Venha até mim e me ensina tudo de novo. 
     Pai... Estou tão perdida. Perdoa o que fiz. Não deixe essa parte de você morrer de dor. Não deixe que algo de ruim me aconteça por arrependimento. 
     Pai... Eu menti, eu sei. 
     Você ainda se lembra dos nossos passeios? Que falta faz o mundo verdadeiro... 
     Pai... Manda o homem parar de tocar piano! Eu não aguento mais. Por favor, pai... 

     Às vezes quando olhava pela janela do quartinho dos fundos, você estava lá, sentando em seu pequeno banco de madeira, engraxando com tanto esmero seus sapatos. E eu, pai? Você parecia tão concentrado, que nem percebia o meu olhar furtivo de admiração, você mantinha uma pose tão cuidadosa e compenetrada que eu acabava invisível... 
     Pare com isso agora! O tempo já passou. 
     Eu queria tanto poder sair com você no domingo depois do almoço. Seria tão bom estar ao seu lado. 
     Pai... Um dia você me deu um abraço tão caloroso e saiu timidamente com um jeito desengonçado e pensativo. 
     Por que pai? Por que? Por que atende a todos os pedidos da Solange e nunca os meus?

     Mãe... Você andava pelo quintal para tomar o sol da tarde. Os seus cabelos ficavam tão lindos com a luz do pôr sol. Lembra aquela vez que voltei para casa, depois de muito tempo viajando pela Bahia com minhas amigas, e você me abraçou tão forte que os ossos estalaram? Sinto como se fosse hoje, foi justamente quando você encostou o seu rosto no meu e me beijou demoradamente. Você me olhava tanto... Abraçava tão apertado que eu me sentia como se tivesse voltado do outro lado do mundo. Aquelas lágrimas que escorreram dos seus olhos me marcaram muito, viu.

     Hoje estou andando pelo deserto porque escolhi assim. Eu tenho que controlar o meu próprio destino, custe o que custar. 
     Por que sofro assim sozinha? Alguém me diga! 
     Por que a minha única companheira é a sombra que me acompanha? 
     Mãe.... Estou aqui... Você ainda se lembra quando eu perguntava por que papai demorava tanto naquelas viagens?  Você nunca me respondeu a verdade, mas eu acreditei em tudo. 
     Mãe...  Eu não queria que fosse assim... Mas eu sei que sempre será. 
     Mãe... Coloque o disco do Elton John na vitrola e toque Skyline Pigeon outra vez. Você sabe que essa é a música que eu mais gosto. Lembra quando você assoviava o refrão sem parar? Meu Deus! O tempo passa tão rápido...

     Gustavo ainda me espera com seu fio de esperança. Talvez esse seja o meu maior desafio. Eu tenho a árdua tarefa de realizar o sonho dele. 
    Uma nova sensação de saudade me domina outra vez. Uma saudade poderosa do Léo. 
    Estou certa que ele pegaria na minha mão e me levaria para cama para momentos maravilhosos e inesquecíveis. E na manhã seguinte traria a bandeja com o café e perguntaria se dormi bem. Ele sempre foi tão gentil e cativante com essas atitudes... 
    Por isso penso agora: "Por quê não fiquei com ele"? Que estranha recordação é essa que me toma assim tão de supetão?

     No entanto, esse tipo de imagem do passado, desperta em mim a certeza que ainda tenho alguém ao meu lado que me ama de verdade. Por isso choro em silêncio e a cabeça continua pesada. 
      Estico o olho na esperança de que Gustavo tenha acordado para conversar comigo. 
    O forro da cortina está meio puxado, nem um sinal de movimento lá fora. O mundo parece totalmente estático. 
     Passo para o outro lado do quarto, no canto está escuro. Fico por uns quinze minutos alheia a tudo que já passei. 
     Tiro um lenço da bolsa e enxugo o rosto, me limpo de toda perversidade que desejei, que dei ou que sofri e lamento que a voz delicada e consoladora do Léo me faça tanta falta nesses momentos.











quarta-feira, 22 de agosto de 2018

O Pecado Capital Parte 08

                                    Episódio 8 (Dicotomia)     

      Sarah Rodriguez! Esse é o nome da pessoa que durante um tempo perdeu o próprio rumo. Ninguém nunca conseguia dizer ao certo quem eu era, de onde eu vinha ou o que me aconteceu. 
     Muitas vezes esqueci qual seria meu eu verdadeiro. 
     Muitas vezes em meus devaneios vagueava desconsolada e em desespero, procurando o corpo e o nome que me deram; Sarah com H, meu pai escolheu porque recebeu o conselho de uma cigana que dizia o H ser importante no nome por estar ligado ao dinheiro e posição de status na escala social, o H também denota a personalidade que se sobressai quando surge um desafio. Ele me queria sempre forte, destemida e com sucesso. Acho que ele nunca viu em mim uma mulher assim, o que me tornou uma pessoa ansiosa e amarga por um longo tempo, e por esse motivo muitas vezes procurei razões para condená-lo, pois, de uma forma ou outra, era o melhor jeito de condenar a mim mesma por me tornar como ele sem perceber. Durante muito tempo imaginei que tivesse vencido e me libertado de todo esse peso, mas com o passar dos anos percebi que nunca havia sido melhor, que tinha conseguido ser inclusive pior, pois via claramente as consequências e apesar disso fui impotente para modificar meu próprio rumo. 
     Quanto mais consciente ia me tornando menos desejo tinha de fazer as coisas - quando se está plenamente consciente tudo parece justo e não há necessidade de mudar nada. A falta de reação, como se expressa num filme chato ou numa peça teatral enfadonha, é um caminho para a morte. 
     Caso eu me afogasse numa praia talvez fosse capaz de entrar num transe teatral para partilhar a vida ativa que existe no mar até ficar madura para renascer. Aí sim compreenderia perfeitamente a transição, embora agisse em total desorientação e sem saber ao certo o que estaria acontecendo em terra firme. Por puro instinto nadaria de volta para atividade humana, até chegar à fonte do ego colossal que andava submerso, e num ato final de desespero, viria à superfície para que pudesse novamente cavalgar as ondas e mergulhar de novo até o momento de me revelar sem desperdiçar o tempo restante.
     O ato de sobreviver seria automático e as variáveis infinitas. 
     Como seria possível deter o corpo quase caindo no vazio do precipício? Seria fácil no momento fatal entregar tudo, dar o último abraço e esquecer o que ficou para trás? 
     Se ao menos eu fosse uma ave e não um ser humano o monstro da minha realidade nada seria comparado ao monstro da minha imaginação, mesmo que o monstro patológico fosse parar no fundo do precipício.
       Se tenho fantasias ao pensar na vida assim é porque possivelmente fiz tudo o que minha voz interior mandou fazer. Ela está permanentemente sussurrando no ouvido: "Se deseja sobreviver, saia da beira do precipício!". 
      Às vezes essa finíssima linha que separa meu sonho da realidade desaparece e eu volto a ser arrastada pelo vazio, recomeço a viagem do eu sem amarras e do monstro no fundo do precipício. Nessa situação posso ser perfeitamente capaz de atender às exigências comuns da vida - de encontrar um amor, de me tornar mãe, de receber amigas, de ler livros, de pagar dívidas, de trabalhar de manhã até a noite e assim por diante. Viver como uma pessoa comum enquadrada numa rotina que atende por um nome e com número de identidade e CPF. E no final, acabar totalmente impotente diante do destino que já foi traçado no dia que nasci, sendo posta a caminhar através de um enorme buraco a outro até chegar ao finalzinho da madrugada cansada e inquieta. 
     Tudo agora se reduz a proporções diminutas, inclusive o mundo que criei que vai muito além dessa linha fronteiriça, o mesmo mundo que um dia foi tão misterioso e limitado. 
     Sim, de repente tudo isso avança sobre mim como um furacão que suga as energias, me torna tão fraca e atordoada que mal consigo me manter em pé e lúcida. Eu me fecho por completo enquanto ouço o murmúrio de vozes tenebrosas tentando me dar lição de moral ou dizendo que do céu só cai água.
    Eu atravessei a linha e o mundo que considerava seguro não existe mais, então fico leve como uma pluma e voo sem me perder, vou me colocando delicadamente entre os restos do que ficou, sem, portanto, rejeitar o espanto de novas descobertas,  não sei se a meu favor ou contra mim, através de sensações agradáveis ou não, fazendo parte da vida real ou da mentira. E não foi por mero acaso da situação que fui diretamente ao osso, penetrando e esmiuçando a carne podre das dúvidas e conceitos arraigados na mente de quem conta essas mentiras e faz falsos planos de libertação num futuro próximo. 
     Tudo isso, não sei ao certo se é relevante como aprendizado ou apenas um espectro de criação imaginária; o que no fundo mais parece o fruto do lado obscuro da vida. 
    Sei muito bem que tudo pode parecer confissão para o arrependimento, ou até mesmo uma crise de hipocrisia cruel e imoral da minha parte. Mas com certeza a coragem sempre existe para desvendar com firmeza os mistérios da vida. E se para alguns as minhas vontades parecem pequenas por me satisfazer com pouco, para outros pode ser algo normal e grandioso que se aprende receber. 
     Sei que em muitos momentos estou cutucando as partes mortas do pensamento, lá onde residem as verdades que afloram assim, meio em desconexo. Lá se esconde aquele ser que busca a si mesmo em seu inconformismo. Por isso em toda essa escalada, faço com que exista algo para pensar, refletir e viver; dou e recebo o máximo que a situação permite; e a partir daí vão se abrindo os caminhos que ainda podem ser desconhecidos - (mesmo que exista e persista um tipo de rebeldia nessa vida, uma rebeldia silenciosa sufocada em lamentos interiores numa parte morta do cérebro, que nada mais é que uma lata de lixo para sensações que não têm mais significado real, mas ainda estão lá fustigando).
     Depois de mais uma noite ao lado de Gustavo, eu acordei, me levantei e, olhando para as paredes ao meu redor, não compreendi absolutamente nada do que está se passando comigo, nem me interessei se o mundo ferve lá fora ou se está na mais perfeita ordem. Em tais momentos parece que nasço de novo e sou novamente batizada com o nome que detesto: Sarah Rodriguez! 
     Tudo o que faço quando me apresento com esse nome parece meio maluco. As pessoas me olham furtivamente e fazem sinais de zombaria por trás de mim quando me viro. Contudo, essa gente não valoriza e nem sabe que diante de toda lógica da vida eu deveria estar morta se acaso a mulher que sou não tivesse sobrevivido a tantas feridas. 
     O que mais me fascina é de uma coisa tão morta e enterrada como eu ter conseguido sobreviver e superar, não uma, mas várias e várias vezes tantas situações, como a que aconteceu com minha mãe que, depois dos sessenta anos, caiu entrevada numa cama acusando fraqueza nas pernas e ossos e com esquecimento de tudo e todos. Ela nunca mais se recuperou e foi ficando pior quando as lembranças foram se apagando mais rapidamente. Às vezes repetia a mesma pergunta várias vezes como se fosse a primeira vez, em seguida reclamava por que a irmã dela, que já havia morrido há mais de um ano, não vinha visita-la. Em certa ocasião, sem firmeza alguma nas pernas, resolveu ir ao banheiro sozinha enquanto eu estava na cozinha preparando o almoço, escorregou e caiu quebrando o fêmur esquerdo. Deu um trabalhão danado durante meses com a aquela perna engessada e se locomovendo de cadeira de rodas pela casa! Um tempo depois, numa consulta médica, recebemos a notícia que ela precisaria colocar urgentemente uma válvula na cabeça para drenar um líquido que provocava inchaço e pressão no cérebro. Ela nunca se adaptou com aquilo, permaneceu com crises constantes de tontura e vômitos. Muitas idas e vindas ao hospital para ajuste da pressão da tal válvula. Passou a ficar muito mais tempo deitada na cama do quarto olhando para teto ou sentada na mesma posição durante tardes inteiras no sofá da sala assistindo televisão, que ficava sintonizada em qualquer canal; ela nunca entendia direito o que estava assistindo. Meu pai foi obrigado a comprar uma cama hospitalar com inclinação e elevação para colocar no quarto deles. Ele se esforçava e ajudava no que podia nos cuidados com ela, mas dava para perceber a tristeza e o desanimo que tomou conta do semblante dele depois que percebeu que ela não voltaria nunca mais à vida normal. Pouco tempo depois de se recuperar da perna quebrada, ela ficou mais deprimida e sem atividade, foi quando passou a usar fraldas dia e noite e precisava de alguém para dar banho. Um belo dia apareceu uma infecção urinária e o médico receitou um creme de uso interno que deveria ser aplicado por 10 dias. Eu achei que não conseguiria e pensei até em contratar uma enfermeira para cuidar dela. Mas desisti da ideia e resolvi eu mesma tentar a aplicação. Não foi difícil, ela colaborou e eu consegui - o que me deu uma certa satisfação ao perceber que realizava algo que nunca sequer havia imaginado que faria, principalmente com a minha mãe. Depois do segundo dia eu já estava bem adaptada à tarefa.    
     Por essas e outras não recuo mais diante de qualquer coisa que amedronte ou fira meus sentimentos, pois a realidade não espera consolo do que pode parecer um castigo, isso é vida! E é através dela que todos os acontecimentos se encaminham, produzindo uma grande quantidade de incertezas e julgamentos. Pois cada movimento é julgado no mesmo instante e um simples passo não é dado sem um julgamento. Tudo está incluído: uma palavra, um gesto, um olhar, um piscar de olhos, uma lágrima, um choro compulsivo, um sorriso solto, um beijo, uma verdade, uma mentira, uma traição de confiança... 
     Logo após descobrir que tudo se tornou uma espécie de purgação aos olhos dos outros, sobretudo por desconhecerem meus dramas pessoais, a vida acabou virando uma sensação trágica e frustrante em meu relacionamento com as pessoas, principalmente com Gustavo. Com ele passei a ter uma entrega constante e minuciosa na atuação teatral diante das circunstâncias do momento e das responsabilidades que recaíram em minhas costas e eu não podia abandonar. 
     Olhando o mundo tal como ele é e pensando assim, posso transmitir a sensação de algo meramente cruel, sem enfeites e sem uma bondade convencional para maquiar ou manipular. Porém, antes de dizer toda a verdade há o recuo porque ninguém quer críticas quando espera reconhecimento, recompensa ou uma dádiva vinda dos céus. 
    São esses ensinamentos que recebi da vida que entram e saem da mente quando toda informação é processada, digerida, analisada e guardada, ou quando retorna ao exterior, em uma situação limite de entrega e abnegação. 
     A vida tomou rumos e efeitos que muitas vezes distorceram a forma como o acontecimento foi recebido por mim em determinado tempo. Nem todo bem que recebi reverteu em bem e nem todo mal reverteu em mal. Muitas vezes na defesa houve um bom pensamento quando na ação havia o conflito com a razão. E a imagem passada para as pessoas nessa situação foi de total desorientação e incoerência do meu sentir verdadeiro. 
     Eu imagino que todas as pessoas têm necessidade de bem estar, de sexo e dinheiro. Por isso que no meio disso tudo me sinto derrotada. Minha filosofia de vida nunca seguiu essas regras. Pois ela vive sendo desnudada pelos lemas da rotina em que vivo com a falta de benesses, dinheiro curto e sexo como necessidade. Nessa situação todos os meus atos de coragem ou covardia são expostos e julgados a revelia do meu querer. Pode até parecer que o modo como me refiro à vida, ao bem e ao mal, seja um sonho ou uma realidade implacável, porém, sinto que nesse meu modo, fujo do plano total da vivência e de opiniões transitórias que abdicam do prazer do meu convívio porque sou assim. Mas, não há renuncia nesse meu ato de rebeldia, não há fuga e nem afastamento para a solidão. Apenas o conflito de mundos opostos, que ora se atraem e ora se repelem com energia excessiva e desnecessária. E no refúgio da mente o bem continua vivo, ele não quer se extraído se o mal prevalece em alguma atitude ou omissão. E nesse conflito nada mais há do que o próprio conflito. Um ataque interior que choca e mantém o silêncio lá dentro. O que em alguns momentos faz encarar a solidão em sua mais pura essência. E isso vai brotando como brotam os grãos de feijão em um tubo de ensaio. 
    A minha compreensão do bem continua presa em um simples pensamento cheio de regras duras e a todo momento sondado pelo mal. A dita cuja compreensão se mantém num abrigo tranquilo esperando a tempestade passar. E assim prossegue a razão permanente no mais puro viver, tentando obter abrigo e pureza daquilo que já se misturou e não se pode alterar. Resta o inconformismo como vilão e redentor no que se considera um bem para uns e mal para outros, quando no abrigo provisório a tempestade inunda a mente trazendo consigo uma lição de vida inerente à vivência de cada um e também à minha.







Cansado e Velho

Minha história gira em torno de mim mesmo, — uma vida quase nas portas do delírio na mente de muitos —, com o intuito único de conti...