sexta-feira, 26 de outubro de 2018

O Pecado Capital Parte 16

                      Episódio 16 (Apostasia)   

    Cerca de uma semana atrás, comecei a passar tão mal que acabei sendo levada às pressas ao pronto-socorro. Isso aconteceu devido a tanto pensar o que eu faria da vida a seguir. Era mais uma noite em que comecei ter delírios; via sombras flutuando na parede e vultos na janela. Falei em voz alta a noite inteira sem parar; esmurrei a cama, atirei objetos para cima e joguei o colchão no chão. Depois de tomar um calmante pensei em tudo o que Léo me falou, e, diante de tantas contradições, caminhei diretamente para o meu cárcere particular em busca de outras respostas - penetrei na minha mente com enorme receio do que viria pela frente. Eu estremeci por dentro ante a ideia de um novo encontro - mesmo com a convicção que ele jamais aceitaria tal sugestão. Pois é bem sabido que ele é orgulhoso; a mãe dele sabe e o pai se recusa a aceitar que são espelhos um do outro. O que mais me assombrou nesse pensamento foi quando imaginei o que poderia acontecer, porque me fez lembrar todas as manifestações de hostilidade gratuita que ele praticou em nossa convivência, todas as vezes que ele me bateu deixando marcar roxas pelo corpo. Vieram então as dúvidas se ele e sua mãe pensavam mesmo que a gente pudesse voltar ou se, por detrás da bandeira branca, outras intenções. A mãe dele dera a entender que fora eu a responsável pelo término de tudo, apenas eu, e que ele não tinha culpa de nada, já que eu não sabia o que de verdade queria da vida. E eu, nessa ocasião, como não me sentia capaz de responder com toda raiva que havia dentro de mim, educadamente me contive.
     A lembrança daquele momento parece meio sem começo, sem fim e sem lógica. 
    As horas que passei aqui ao lado do Gustavo me trouxeram grandes revelações com significados importantes do meu destino. O que eu nunca imaginei era que a realidade poderia ser expressa de um jeito tão diferente, como se fosse um fenômeno paranormal, que apesar de me trazer alento, me desorienta totalmente. Estou sendo sujeita a me desviar do objetivo primordial da vida e continuo em dúvida quanto a sobrevivência da mente sã para descobrir a minha própria identidade que, outrora genuína, foi perdida com o passar dos anos com as pancadas que ele me deu na cabeça. Depois disso adquiri um zumbido permanente no ouvido esquerdo. 
    Alguma coisa muito estranha continua crescendo dentro de mim. Estou me tornando parte de um mundo cíclico que veio se desdobrando no pensamento consciente, criando um novo ritmo de realidade alternativa. Espero de cada palavra ou pensamento uma nova chave para desvendar os segredos mais íntimos, ou a verdadeira razão desses sentimentos amargurados. Parece que tudo que se cerca desse novo florescer segue o caminho de habitar um mundo desconhecido. Um mundo que separa correntes invisíveis, hostis e venenosas de outro mundo bom; um pequeno mundo de onde poderia vir toda alegria e amor. Esse mundo ruim surgiu em mim do nada e se expandiu até tomar para si tudo que entra em contato, principalmente os pensamentos impuros e vingativos contra a raça humana, a raça masculina. Diante dessa sensação os sentidos vão se tornando mais dolorosos, é a nova imagem de Léo que surge do meu interior através do pensamento. Sem sombra de dúvida eu alimento isso com o desejo de vingança para que ele sofra dor; o que impulsiona a minha alma é o rancor. 
     Em apenas um piscar de olhos eu poderia me livrar do mundo ilusório e cheio de fantasmas que assombram a existência; estaria ao seu lado,olhando no fundo dos olhos, já sabendo de tudo o que aprontou. Nada mais fluiria desse momento além das maldades vindas do meu pensamento desconhecido que eu não conseguiria conter. Eu seria por muito tempo seguida pelos olhos de seus parentes e amigos, que me procurariam  incessantemente em busca de justiça, seria como num sonho de tempestade ou numa queda no penhasco quando não se sabe o tem à frente. Você, Léo, me encontraria e viria até mim sem qualquer fronteira ou limitação. Agiria como se eu fosse a grandeza infinita de algo inexplicável que habita sua mente nos desejos de fúria, agressividade e paixão que não consegue medir. Depois de ter passado por isso voltaria ao seu mundo real, ainda que se sentisse flutuando por um mar de brasas ardentes abaixo dos pés e de cinzas sufocantes acima da cabeça. Eu sei que quanto mais me recuso a crer que esse mundo poderia existir, menos sensações sinto através das suas ondas cerebrais que me perseguem. 
      Estou cansada das formas vagas e obscuras nas quais meus olhos nunca enxergam qualquer milagre nascendo. O meu mundo é misterioso. Estou expulsando de mim a autêntica substância que desejo para ser feliz. Estou certa que toda realização ainda mora em algum lugar, mesmo imaginando que tudo poderá continuar vazio e deserto aqui dentro. 
     Nesse meu pensamento mais uma vez concluo que nem tudo tem começo, meio e fim bem explicados. O meu mundo alternativo serve para reanimar a chama que começa a se apagar da metade de qualquer sonho que já tive em diante. Mesmo que a partir de agora eu ainda recorde algo de bom a respeito daquilo que sonhei ou vivi ao seu lado, meu amado Léo.
   Solange, você está aqui? Sinto a sua presença. Fala comigo. Preciso tanto de você nesse momento tenso... Preciso resolver essa situação com Gustavo. Por favor, me ajuda. Não paro de pensar o que vivi com o Léo, me ajuda a sair dessa, me dá uma luz.
      No embalo do ritmo torturante dos pensamentos eu pulo e estou novamente com ele preenchendo os espaços da minha cabeça. Foi num relance que lembrei quando, de maneira aflitiva, Léo ficou triste ao me contar da zombaria que o pai dele fazia da sua falta de aptidão com a vida. Com grande desgosto me contou que o pai repetidamente duvidava da sua capacidade por considera-lo imprestável, valorizando com isso o sucesso profissional e estabilidade de gente do trabalho ou vizinhos que ele mal conhecia. E ele, Léo, perdido em pensamentos, acreditava em tudo aquilo a ponto de duvidar de si mesmo, mas eu o apoiei, dei força. Sabe de uma coisa? Embora eu nunca pudesse e nem tivesse a real coragem de dizer adeus de verdade, eu sentia que o amaria mais profundamente se em algum momento ele me fizesse acreditar que merecia o meu amor. Até a hora da minha morte me arrependerei por não ter conseguido perdoa-lo pela traição, mas ele bem sabe que nunca consegui esconder o meu gênio tal como ele sempre foi; lamento e me arrependo por não ter atingido tal nível de generosidade a cada nova oportunidade que tivemos; evitei encontrá-lo quando insistiu demais. 
     Foram dezenas de vezes que pensei que deveria perdoar, ainda sabendo que nunca me falou uma única verdade de suas intenções. E depois do perdão, quando nova mentira viesse, eu deveria perdoar de novo; mesmo que doesse lá dentro o conhecimento que as coisas entre nós eram tão desiguais do ponto de vista da sinceridade e da agressividade. 
    Depois de tanto tempo junto eu já me habituara a aturar os defeitos com menos ressentimento. No entanto, quando tudo parecia sob-controle, nova crise vinha por causa do modo de agir; me tratava tão mal como nunca o fizera antes e tudo mudava outra vez. Foi quando, inconformada com tantos altos e baixos, comecei a contar toda a história a você, minha querida irmã Solange; traindo as confidências de casal e com o conhecimento que seria odiada para sempre por me igualar aos atos inconsequentes dele, mesmo assim segui em frente na tentativa de ajuda-lo de um modo totalmente diferente. No momento da descoberta de todos a respeito da traição, daquilo que ele fazia sem que ninguém soubesse, foi quando chorei ainda mais como nunca antes chorara; lutei querendo bloquear aos meus ouvidos o zum-zum interminável. Implorei à Deus que intercedesse por nós, mas Deus ignorou meu pedido e eu o amaldiçoei. Talvez Deus achasse que eu fiz por merecer tudo o que estava me acontecendo – eu não encontrei o ombro naquela ocasião, dessa irmã amiga e devotada, ao meu dispor - você estava em Milão a trabalho. Nosso pai me disse que eu trouxe vergonha e escândalo à nossa família, que eu não era como você que sempre primou pela discrição. Eu, por livre vontade, escolhi a pessoa errada; ele insistiu que eu perdi o senso de noção, respeito e ética ao aceitar tudo sem limites de um canalha. E mais, por me deixar levar por essa imperdoável fraqueza e, depois, não me recuperar dos estragos, sendo do ponto de vista moral associados à imagem pessoal destruída. 
    Antes que meio ano se passasse, a eterna decepção causada por Léo não cessou; uma grande inquietação tomou conta do ambiente de casa, onde se evitava falar a respeito. Houve uma permanente sensação de remorso e dó de mim, principalmente da nossa mãe. De certo momento em diante eu já não sabia mais o que deveria esconder ou o que deveria revelar a você, pois a minha inteligência se recusava a engolir novos enganos que causassem ameaça a todos nós. Foi quando lhe consultei pela última vez e parti de casa para dormir em meu emprego no hotel, no qual, você bem sabia aonde era, pois consegui a vaga de sub-gerente através de seus conhecimentos e influência. Fiquei meses assim, sozinha, sem família por perto, sem homem na minha vida, sem querer falar com ninguém e usando outro número de celular que ninguém conhecia. Fui praticamente obrigada a aceitar o destino e a vergonha de mim mesma. 
     É, o Léo jamais imaginou essas coisas, eu desse jeito. Jamais sonhou que sua traição mudasse tanto a minha vida. Que vergonha! Agora parece que a atual namorada dele, a quem fez promessas não cumpridas, ficou sabendo do seu jogo comigo. E diante da ameaça do nosso retorno, rompeu com ele por se sentir ultrajada. Pode isso, Solange? Responde!

     Léo, meu pensamento agora é exclusivamente seu! Solange não está mais aqui.
    O que me deixa mais enraivecida é que um dia você me disse: “Não tenho mais nada com ela!”. E eu acreditei em você, meu amor. Acreditei, sim!
    Mesmo não entendendo muito bem a situação, eu continuei acreditando em você. Foram tantas repetições da mesma frase que nem sei contar. Muito bem... Mal eu sabia que você primou por muita lealdade, mas nunca comigo. Até porque fui eu a primeira e única que apareceu em sua vida e queria de você comprometimento e cumplicidade; mas a sua mente estava voltada para outros sonhos, os quais o levaram por caminhos opostos ao de alguém que desejava muito mais do que você estava interessado a oferecer; esse alguém não era eu!
   Léo, agora estou tomada por uma espécie de nostalgia básica daqueles dias ensolarados, quando ainda havia um traço de sorriso em nossos lábios. Que tarde de sábado foi aquela? Estava um dia quente e ensolarado no parque Villa Lobos, era fim do inverno. Admirávamos tudo caminhando por aquele lugar, estava muito bonito e cheio de gente. Foi preparado para um show de blues e música brasileira. Completamente cercado de um lado por um enorme palco,caixas de som e um camarim nos fundos. Pelo outro lado, dezenas de árvores fazendo sombra para famílias que foram ao piquenique; um sítio apropriado para alguns jovens admiradores de música, ou da beleza do próprio parque, beberem cerveja e todo tipo de bebida alcoólica. E alguns grupinhos fumarem baseados enormes que passavam de mão em mão, de um para outro, numa fila interminável de tragadores. O cheiro de maconha vinha misturado com a névoa de gelo seco que subia do palco. A vegetação rasteira e o chão de terra batida contribuía para a caminhada fora da trilha de cimento rústico, enquanto isso o som de gaita e guitarra slide rolava no palco. Logo nos acomodamos em um banco feito de madeira, ficamos ali juntinhos, eu deitada em seu colo e com as pernas esticadas no banco. Foi Lindo demais! 
    Nessa tarde de sábado caminhamos de mãos dadas muito felizes e emocionados. Mas logo tivemos uma ideia melhor.
       Você se lembra? Horas depois fomos para o motel. Foi lindo o momento quando arrancamos toda a roupa bem depressa e entramos debaixo do chuveiro. Fizemos amor rolando pelas paredes como dois insanos. A coisa mais bonita que poderíamos oferecer um ao outro naquele momento era a entrega. Estávamos numa cumplicidade exclusiva e eletrizante, completamente abertos ao mundo e às novas sensações que aquele momento nos fazia sentir. Naquele exato minuto não havia mais os sonhos roubados do ontem e nem a jovem frustrada que agora carrega a dor. Eu era apenas tolhida de impacto por uma pesada ancora que balançava mergulhando no meu mar caudaloso e fundo - fazendo de mim uma mulher feliz e plena. 
     A luz da vida estava em cada movimento, em cada energia que entrava e saia através do nosso instinto animal. E naquele ato desbravávamos os caminhos, o seu cheiro másculo era bom e excitante; cheiro do fruto proibido no jardim do éden. Seu perfume grudou na minha pele e se espalhou por todo o pequeno ambiente. O seu corpo era o templo a ser cultuado pelo meu toque e sua língua se tornava inquieta nos caminhos para além de um simples lambuzar. Ela se mostrava forte e destemida enquanto o seu corpo vibrava. Os seus dedos aos poucos tateando, escorregando devagar, afastando cada pétala da minha flor louca para desabrochar em busca de qualquer emoção que tirasse de mim a cautela. De repente eu me esticava de uma só vez com aquela sensação sem controle de tudo escorrendo para fora.Você me lambia aos poucos, como se desejasse que o néctar nunca mais acabasse, depois, no final, selava o frenesi com um beijo demorado, quieto e apaixonado na minha xoxota completamente molhada e escorregadia. 
     Seus lábios ainda devem manter os velhos segredos dos pedaços que puderam ser delicadamente esticados com os dentes - partes estimuladas pela circulação ligeira que virou minha febre sem cura. 
     Você me levou ao mundo de encantamento feito para dois, um mundo desvendado em novas sensações e se definindo aos poucos numa nova motivação que sempre levava à outra - com um leve pensar no infinito. 
     Depois do último aperto; um único suspiro. Momento sublime. Olhos fechados e nossos corpos contentes num breve instante. 
     A flor guardou o segredo por onde a realidade escoou; revelou a verdade dos meus desejos inconfessáveis por você. 
     Então, por um instante, o esboço do seu sorriso ainda motiva enorme prazer em mim, clareia o ambiente desse quarto.
      Eu sinto agora o ar do dia que acabou de nascer e dele me alimento. Diante dos meus olhos está o corpo de Gustavo, último refém e vítima do meu desejo mais intenso, o desejo em carne e osso que tocou suavemente minha flor com pétalas sobrepostas, de onde verteu novamente aquele líquido mais precioso para facilitar a condução da seiva da vida; o meu alimento primordial.  
     Léo, veja só o estado de Gustavo! Consegue sentir o meu ar de dúvida e apreensão?
    O que nós fizemos?


    

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