sexta-feira, 21 de setembro de 2018

O Pecado Capital Parte 12

                              EPISÓDIO 12 (Estigma)     


     Continuo sentada aqui à beira da cama como se estivesse à beira de um abismo. Imagino o passado e temo o futuro enquanto Gustavo dorme. Acho que terei de chamar algum médico, porque ele não acorda e nem se mexe.  
      Ao tocar delicadamente o seu rosto um novo semi-transe toma conta de mim. Novamente me reencontro com o passado, que nem parece tão distante assim, e uma angústia profunda e incontrolável com o presente me faz tremer pelas consequências. Em outro estalo do pensamento chegam os dilemas e as incertezas que aparecem juntamente com a frustração e o desânimo. Eu me sinto tão desorientada e confusa, tão ou mais transtornada que uma figura patética perdida no meio do nada.

    Eu, intuitivamente, na fase em que namorei o Léo, tinha a nítida impressão que teria uma boa história para contar depois de alguns anos. Claro que não pretendia me manter à margem de tudo, ou me retrair passando muito tempo remoendo os fragmentos do que não me agradou quando tudo terminou.  
     Eu adorava a ideia do jogo de sedução feito gato e rato como a gente fazia. No entanto, reconheço que hoje me culpo, ou quem sabe imagino, coisas totalmente diferentes por ele ter motivado meu desencanto. Faço um esforço enorme para mudar a sintonia, imaginando que "algo mais" poderia novamente me fascinar em todas as expectativas que criei a respeito dele. Só assim os motivos do desencanto conseguem fugir da minha cabeça nessa nova fase de vida com Gustavo.

     De uma coisa tenho certeza: quando o momento da revelação do verdadeiro amor chegou eu estava pronta. Só Léo não percebeu e o tempo passou.
     Agora estou praticamente solitária e usando de uma linguagem dúbia, a qual apenas minha irmã soube entender sem qualquer problema. Mas meu pai... Ele se cansou de dizer que talvez eu tivesse que nascer de novo para ter conserto. Ainda me lembro muito bem das palavras que dizia: “Mesmo que a vida seja uma coisa totalmente transitória para todos nós, parece que suas histórias de insucessos nunca vão se acabar aqui ou em qualquer outro lugar imaginário da sua mente louca!”. Ele sempre repetia que eu não tinha qualidades para uma vida normal e isso sempre me feriu bastante.
      Porém, ele querendo ou não, a herança ilustre deixada pelos antepassados, a qual sei que devo honrar, está presente em mim. Ela está no meu sangue, no meu espírito e no meu pensar. E quando por um instante eu estiver desorientada, deverei dar graças a Deus de estar viva. Porque apenas assim eu posso encontrar os mais loucos seres humanos sonhadores que são parecidos comigo. E eles convivem por todo o canto; são os fanáticos e lunáticos que elaboram estratégias mirabolantes para o bem ou para o mal. E nesse mundo tem uma atmosfera rarefeita onde todos os pensamentos flutuam e vão longe, muito longe, até a realização de façanhas impossíveis e mentiras engendradas. É tudo isso que faz dessa minha psicose uma realidade muito viva no meu pensar e agir. É assim que eu vivo por minha única escolha.
        
     Eu sempre soube que sendo uma pessoa comum, dentro dos padrões aceitáveis, jamais alguém iria me olhar com desconfiança, mesmo que em algum momento eu fugisse só um pouquinho dos padrões. Mas, por minha única e exclusiva culpa, carreguei durante anos uma vida completamente ausente de sentido e consciência. Uma vida só com significação para mim e mais ninguém. Afinal, tudo o que poderia haver de mais importante estava em meus pensamentos e nas tolas convicções de ideias preconcebidas a respeito de qualquer coisa.  O modo correto era que tudo teria que ser muito simples e direto, sem rodeios ou esperas intermináveis que me irritassem. Nunca me interessei por métodos estabelecidos e tampouco regras. Pois, eu criava a minha regra, assim como, a forma de executar qualquer coisa ou pensamento. 
        Poxa... Quantas vezes fui acusada de fazer um grande desperdício de palavras e ações? Alguns diziam que eu falava demais e queria explicações de tudo. O que as pessoas nunca entendiam é que eu tinha uma aptidão para a comunicação. Queria apenas me comunicar; entender, explicar e receber de volta as respostas. Mesmo que disso resultasse uma longa lista de minuciosos detalhes sórdidos ou cômicos. Sempre fui dominada por uma grande imaginação e deduções, só assim consegui tocar a vida com certa leveza de espírito tentando não ser enganada pelos espertos. 
     O curioso é que desde muito pequena eu já me apegava numa visão diferente dos objetos, das palavras e das pessoas. Quando era menina-moça nunca me conformava com respostas sem sentido - eu tinha uma curiosidade imensa pelo conhecimento. O que eu queria saber deveria ser explicado com exatidão, caso contrário, eu entrava em um emaranhado de perguntas até encontrar a resposta que me satisfizesse por completo. O mais interessante disso tudo é que, ao mesmo tempo que eu tinha grande facilidade para entender algo, por mais complexo que fosse, jamais conseguia adquirir a habilidade de explicar, com palavras claras, o que havia entendido; carrego essa falha comigo até hoje. 
      Durante um tempo tentei expandir meu conhecimento por coisas ocultas. Busquei, em outro mundo as noções que me faltavam aqui - por insistência e orientação do meu pai. Em suma, aprendi que deveria ter o domínio desse e do outro mundo também, mas nunca tive de nenhum; nem queria que vissem os meus dons como ciência ou adivinhação fajuta. Nessa época eu tinha vôos solitários, passando de um nível a outro e enxergando coisas que nunca conseguia descrever completamente. Eram figuras disformes numa espécie de transe maluco que beirava o sonho e se tornava enfumaçado de uma hora para outra. As figuras disformes se movimentavam por dentro da cabeça, iam tomando o espaço me fazendo crer que tudo que eu acreditava existir existia de verdade. Muitas revelações me foram expostas através dos tempos dessa forma. Mesmo naquele longínquo tempo de infância em que eu nada compreendia a respeito do sobrenatural. Eu tive muitos motivos para acreditar que o futuro promissor estaria na minha força de pensar e agir e não no meu sexo. E, de um jeito qualquer, estava desperdiçando visões proveitosas que me traziam ensinamentos em mensagens que poucos tinham o privilégio de receber. Mas eu era medrosa, tinha receio do que estava por vir e nunca agia. Deixei tudo passar como se nada estivesse acontecendo. Tentava a todo custo ignorar. Talvez estivesse nesse meu medo aquela falta de fé e foco que meu pai fez questão de mencionar quando estava bravo comigo. 
      Poucas vezes eu vi situações se repetindo numa visão (por mais paradoxal que isso possa parecer) e me deixei ser subjugada pelo transe. Fiz apenas por ter um tipo de curiosidade mórbida. Mas quando pretendia entender a significação predominante da visão, recebendo o crédito por ser especial, acabei sendo rotulada como uma idiota. Uma pessoa sem qualquer noção real da vida. 
     Mesmo sendo ridicularizada me senti como tivesse recebido uma missão dos céus, e que através dessa iluminação recriaria o meu mundo ou modificaria o mundo de alguém para melhor.

    
       Hoje, quando me levantei devagar para que Gustavo continuasse dormindo, fiquei me perguntando se ele gostou de fazer amor comigo. Nos momentos seguintes à transa, pouco antes de cairmos no sono, mantivemos uma conversa tola sobre qualquer coisa do passado dele. Ficamos olhando para o teto enquanto o rádio tocava música romântica internacional na madrugada. Eu brincava com o pênis murcho dele enquanto ele apertava carinhosamente o bico do meu peito com a ponta dos dedos, como se alisasse uma massa de moldar. Logo começou falando sobre uma ex-namorada, a qual se arrependia profundamente ter conhecido. Contava a história em um tom meio jocoso, enquanto ao mesmo tempo insistia no bico do meu outro peito, com aquele tipo de estimulação que fica sempre no mesmo local sem compromisso, o que já estava me incomodando. Então contava que os momentos sexuais que viveu com a ex. tinham sido muito ruins. Dizia que se mostrava muito disposto e cheio de energia para desfrutar com ela todos os prazeres possíveis, que iam desde viajar para qualquer lugar ou fazer amor em locais perigosos e inusitados - era o que ele, no primeiro encontro, fantasiava e imaginava poder fazer depois. Ela o encantou dizendo que já havia viajado pelo mundo, e recentemente à Argentina e à Machu Picchu no Perú. Isso o atraiu por também gostar de viajar e de gente que já andou pelo mundo com muitas histórias para contar. 
     Aí o tom dele foi mudando, ficando bem ressentido, ao descrever as intimidades. Ela chegou a dizer que se sentia profundamente frustrada com a forma como ele fazia amor, pois acreditava que, pelo fato de ser um homem com mais de 25 anos e menos de 40, em plena forma física, deveria ter um desempenho pelo menos razoável na cama. Ele se lamentou e disse que era constrangedor tais críticas, seria melhor tentar melhorar em vez de só criticar, pois, afinal de contas, ela era impaciente ao ponto de quando se passavam poucos minutos mudava o humor e saía num pulo só, pisando duro, direto da cama para o chuveiro. Quando voltava, parecia outra pessoa, bem mais calma e se animando para tentar uma nova sessão que duraria no máximo dois minutos e, em seguida, daria o pulo para uma nova corrida ao banho. Isso o cansou. Ele disse que a considerava bonita de rosto e de corpo, inteligente e descolada, porém cheia de TOCs e de controle emocional precário para uma relação sexual satisfatória, mesmo que ele fosse um atleta sexual. 
     A maneira que ele usou para dispensa-la não foi aquela tradicional na base da conversa. Ele usou do artifício de ir dando canseira na moça pelo messenger do facebook, até parar definitivamente de conversar com a coitada. Mesmo assim, um tempo depois, ainda ligava p/ ela de vez em quando para perguntar se estava tudo bem. Ao terminar de contar essa história ele deu um sorriso irônico, era como se estivesse sentindo orgulho em ter me encontrado e a gente se dar tão bem sexualmente. Fiquei imaginando: "Que cruel desventura o Gustavo passou com essa moça maluca. Talvez isso pudesse ter causado um trauma de rejeição sexual que precisasse de terapia para curar". 
     Foi nesse momento que comecei a rir sem parar e soltei o pênis dele. O olhar dele foi de interrogação: “Por favor, por favor... Tente se controlar. Do que tanto ri?”
Com essa pergunta dei mais gargalhadas, as lágrimas chegavam a escorrer pelo rosto. No momento em que parei de rir, consegui dizer: “Como você foi impiedoso com a moça, só pelo fato que ela que não era boa de cama e jogava a culpa em você. Isso não se faz, viu mocinho!”
Continuei com as gargalhadas, mas de um jeito mais tímido; consegui parar um pouco para perguntar: “Qual outra maldade você fez para ela?”
Ele respondeu: "Nós não nos vimos mais. Eu nem queria... Ela... Bem... Ela era praticamente uma estranha. Saímos poucas vezes.". Dei preferência àquelas que conheci depois e as quais gostei mais de sair e conversar. Você acha que fiz mal agindo desse modo? Ela era muito maluca, talvez eu não aguentasse mais tempo. Responda sem rir, por favor. Eu fico preocupado quando você ri assim. Parece uma louca que acabou de sair do hospício.”
“Quando eu rio assim é porque estou louca mesmo, fico louca de vontade de chorar de rir pelo lado cômico e trágico da sua situação. Ouvindo todas essas coisas fico preocupada comigo, imaginando o que você seria capaz de fazer se sentisse raiva de mim. Você iria me dispensar via whatsapp? Você um dia agirá comigo como todos os homens agem com as mulheres? Serei apenas mais uma na sua lista?".
“Não veja as coisas dessa forma. Ela me provocou.”
“Puxa vida Gustavo, tudo isso foi mesmo muito chato... Não se incomode em ficar explicando mais. Eu sei que você fez aquilo que achou que era certo fazer. Bom... Mudemos de assunto. Você é perfeccionista?”
“Por quê pergunta isso? É algum tipo de provocação? Caramba, Sarah, você sempre muda de assunto abruptamente e vem com alguma pergunta com duplo sentido!?"
“Não! Imagina... É que reparei que você gosta das coisas planejadas, tudo do seu jeito... Isso é bem típico de quem tem muita organização e senso de perfeição. Não é uma critica, é apenas uma forma de constatar o seu jeito de ser.”
“A minha resposta mudaria alguma coisa na sua visão sobre quem eu sou? Ou na verdade você tem medo de gente que é organizada, porque quem é organizado cobra organização?”
    Fiquei tão encabulada com a forma como Gustavo colocou a situação, percebi que se não usasse as palavras corretamente a armadilha poderia se voltar contra mim e ele poderia me julgar como uma mulher sem zelo algum.
     Depois de pensar um pouco respondi: “Bem... Entenda... Estou te perguntando isso porque minha mãe e minha irmã sempre me ensinaram a ser muito organizada. Elas não admitiam nada sujo ou fora do lugar. Ao tirar-se algo do lugar deveria-se observar com cuidado onde e como estava acondicionado para a reposição. Minha mãe, principalmente, sempre foi muito cruel nessa parte; não aceitava preguiça e nem desculpas”.
     "Se for só isso, eu não sou perfeitinho, não. Sou bagunceiro e desorganizado. Mesmo assim sempre sei aonde estão minhas coisas. Minha bagunça eu entendo".

      Agora meu foco é outro. Gustavo não se mexe, isso faz a  lembrança do momento da madrugada parar por aqui. Estou preocupada com ele.
      Tudo parece sem começo e sem fim nessa luta, mesmo que eu tenha ficado muito contente como nos comunicamos nessas poucas horas. Foi uma conversa íntima e cheia de significados importantes. Houve uma forte tentativa de ambos se adaptarem ao jeito um do outro. O que eu não sabia é que toda essa realidade estava sendo expressada de um jeito totalmente diferente. Como se acaso fosse um fenômeno que me desorientasse totalmente. Algo que sempre me desviasse do meu objetivo primordial da vida, e que me levasse a um tempo de perder totalmente a minha identidade genuína. Algo muito estranho crescendo dentro de mim como se fosse uma vida vegetal. Um mundo cíclico se desdobrando no pensamento consciente e criando um novo ritmo de realidade numa experiência potencializada que se manifesta sob a forma de mistérios e descobertas, ou que espera em cada novo pensamento uma nova chave para desvendar o segredo. Parece que tudo que se cerca desse florescer segue pelo caminho do habitar um mundo intermediário. Um mundo que separa correntes invisíveis que são hostis e venenosas do outro mundo que é bom; um pequeno mundo de onde vem toda alegria e o amor. Esse mundo paralelo surge do nada em modulações sequenciais, vai se expandindo e tomando para si tudo que entra em contato - principalmente meus pensamentos vis. 
     Com isso os sentidos vão se tornando mais aguçados e dolorosos, e meu ser interior tomando forma e pensamento é alimentado por desejo de vingança e dor. O que impulsiona a alma é rancor. Em apenas um piscar de olhos me livro desse mundo ilusório e cheio de fantasmas que assombram minha existência. Percebo que estou imbuída de mim mesma numa missão suicida. Sinto que fui enviada pelos anjos e por eles luto em nome do encantamento que floresce na alma e toma conta do corpo. Nada mais flui nesse momento além do feitiço vindo do desconhecido. Sou por um instante seguida  pelos olhos do anjo decaído que espreita a todos nós, sem fronteira ou limitação. Age como se verdadeiramente fosse a grandeza infinita de algo insondável que habita minha mente. Depois de ter passado por isso sentirei-me no meu mundo real, mesmo que esteja completamente presa no universo paralelo de imundices. Sei que se me recusasse a crer que ele existe, ainda assim desejaria ficar dentro dele por mais tempo, mesmo sem poder toca-lo ou senti-lo, bastaria o prazer. Viveria das sensações, mesmo que fossem formas vagas e obscuras nas quais meus olhos nunca vissem qualquer milagre nascendo num momento de criação ou de morte. Nesse meu mundo misterioso ainda reside a autentica substância que desejo para ser alguém. Estou certa que toda a minha realização mora em mim e tenho a consciência que tudo ainda está vazio e completamente deserto aqui dentro. Nesse meu pensamento nem tudo tem começo ou fim bem explicados. O mundo paralelo serve para reanimar a chama que começa a se apagar da metade de qualquer sonho que já tive em diante. Mesmo que eu me esforce para mais nada recordar a respeito do que sonhei ou do que vivi com minha família, Léo ou Gustavo.





Um comentário:

  1. Boa noite,Sr.Autor!Incrível como Sarah vive "presa"em seu passado,através de pensamentos que só a torturam e trazem sofrimentos.E agora,vindo em sua memória também,a conversa tida com Gustavo antes da última transa,fez a personagem achar que realmente,era uma qualquer,sem importância alguma em sua vida.Apenas mais uma.Sarah realmente necessita de tratamento,pois,no final da estória o que ocorre é achar que foi criada apenas para o sexo.Não seria capaz de ter uma vida normal,como manda o figurino:casar(não necessariamente),ser dona de casa e mãe de seus filhos.Isso sim era o que sua família almejava.Será que até o final deste conto,veremos Sarah realizada em algum de seus pensamentos?Essa forma misteriosa de descrever os fatos,é que nos prende a cada capítulo.
    Parabéns e até o próximo...Bjs.

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