sexta-feira, 3 de agosto de 2018

O Pecado Capital Parte 03

                                       EPISÓDIO 3 (VISLUMBRE)

       Depois do sexo relaxamos por alguns minutos, ele se aconchegou em forma de conchinha, jogou o lençol por cima dos nossos corpos nus e dormiu com a boca perto da minha orelha. Não estava tão frio de madrugada e mesmo assim eu não conseguia pegar no sono. Olhei o celular e já eram mais de três e meia no silêncio do terceiro andar do hotel. Eu necessitava respirar ar fresco. Resolvi levantar e me enrolar no cobertor para dar um passeio na pequena sacada que dava para a rua. Senti mansamente no rosto um pouco da brisa da madrugada soprando da serra da cantareira. Olhei para cima e fiquei admirando o céu limpinho e cheio de estrelas com a lua iluminada perto do horizonte. Por um instante lembrei de um passeio que fizemos com o meu pai para uma colônia de férias em Caraguatatuba. Eu tinha 16 anos. Nesse ocasião ele fez com que todos nós ficássemos acordados até mais de meia-noite e meia para observarmos a chuva de meteoros que aconteceria até às 5 da manhã. Minha irmã e minha mãe não aguentaram a espera e foram dormir enquanto meu pai e eu procurávamos um banco de madeira comprido que ficava atrás da cozinha comunitária para dali enxergarmos melhor todo o firmamento, incluindo o horizonte leste. 
"-Pai, que estrela é aquela no centro do céu?
- É a estrela cachorro. Reparou que ela tem brilho mais forte que as demais?
- Sério? Pensei que fosse um planeta, talvez Vênus.
- Não, filha. Vênus está mais para o horizonte oeste.
- O senhor parece gostar bastante dessa estrela. O que ela tem de tão importante?
- Filha, eu acho que todo mundo tem certa admiração por ela. É a mais brilhante do céu e mais próxima da terra, pode ser vista em qualquer hemisfério do nosso planeta. Dizem que se você viajar na velocidade da luz chegará lá em pouco mais de oito anos e meio.
- Certo. Mas o que isso tem a ver com a nossa vida aqui na terra?
- O seu olhar não deve ser exatamente para ela e sim para uma irmã anã que orbita em sua volta. É chamada de Sirius B e não pode ser vista a olho nu.
- Se ela não pode ser vista então por que estamos olhando?
- Para tentar desvendar mistérios e caos.
- Caos? Mistérios? Tá maluco? 
- Eu acredito que tudo na nossa vida tem que ter um significado cósmico. Há cerca de cinco mil anos os africanos já conheciam Sirius B. Eles não só sabiam da sua existência, mas também da sua localização e órbita. Naquele tempo não havia instrumentos astronômicos capazes de um tipo de descoberta assim. Todo conhecimento era transmitido por ancestrais, de geração a geração. Isso não é incrível?
- Interessantíssimo, é mesmo um mistério intrigante, mas por que você está com essa obsessão agora que viemos ver os meteoritos?
- Não tem obsessão. Estou imaginando o universo macro e micro e a lógica que existe nisso.
- Pai, acho que você está ficando maluco. Tomou daquele remédio de novo?
- Presta atenção filhota! Os nossos ancestrais receberam o conhecimento detalhado da existência de Sirius B, isso através de alienígenas que visitaram a terra, assim como toda ideia complexa sobre cosmologia. Esses seres vieram do sistema de Sirius A, que é uma estrela com cinqüenta por cento a mais de tamanho do sol e com luminosidade mais intensa vinte e três vezes.
- Por que existe a certeza que vieram de Sirius?
- Apenas pela proximidade. Só isso. Eles estão esperando a nossa evolução. Talvez espiritual... Um dia o mundo será habitado por uma população feita de plasma, gases ou de alguma energia desconhecida.
- Que absurdo!
- Talvez seja isso mesmo, ou talvez não. No fundo eu acho que existe algum tipo de porta, uma rachadura na realidade que ainda não somos tão desenvolvidos para alcançar. Uma passagem que questionará muitas de nossas filosofias fundamentais: religião, ciência e historia. Proezas de uma percepção possível que não dominamos e que poderia nos levar a outra realidade. Um lugar onde o que vivemos aqui talvez fosse invertido. Tudo é um enorme enigma. Inclusive as mensagens que recebemos por telepatia acreditando em mediunidade.
- Sei, sei. Tô entendendo tudinho... 
- É sério, filha. Nós nos comunicamos permanentemente com o universo e suas forças. Alguns são mais capazes, outros menos. Todos têm essa capacidade. Pode acreditar que viemos do espaço e para ele voltaremos.
- Meu Deus! Sinto muito, mas não consigo acreditar nisso. Acho até que existem entidades invisíveis tipo fantasmas ou coisas assim, mas levar esse tipo de pensamento como lei não é nada lógico.
- Menina, a lógica está em acreditar na evolução e no conhecimento. A lógica está nos nossos pensamentos. Os extraterrestres me contaram e agora eu conheço meus medos e amarguras. O meu pensamento foi jogado no universo há tempos e flutua pelos ares. Tenha cuidado com os seus. Pense antes de fazer qualquer coisa e imagine tudo o que tem a perder se for fraca. A vida é um enigma, encontre a solução e vá adiante. Encontre o seu ponto de equilíbrio. Veja lá aonde está Sirius, ela é como a projeção da nossa alma em transito, ela energiza o nosso mundo de pensamentos de forma positiva. Sinta a energia dela e do cosmos e desperte seu espírito para uma vida tranquila."
    O vento começou a soprar mais forte na sacada e me fez espirrar. Resolvi entrar. E justamente por toda essa lembrança mística e cheia de encantos, que pude começar a pensar em finalmente me libertar da camisa de força, do escuro. Fechada em meu eterno mundo de medo e solidão, foi de onde pude me agarrar a uma nova esperança real e positiva. Estava agora diante de algo substancialmente sólido; algo me reintegrando ao que era significativo no período em que tudo de bom aconteceu conosco. Depois desse tempo talvez eu nem tivesse mais identidade própria e pairava permanentemente num vácuo que não me levou a lugar algum. O dia a dia era muito firme diante de uma única imagem - a que refletia apenas um falso mito criado por mim. Essa imagem era da figura lendária e com toda a beleza reconhecida nos detalhes físicos de cada traço de seu rosto bem desenhado pelos deuses: cavanhaque, bigode e sorriso irresistível. Você agia com tamanha maestria que era impossível lhe questionar suas intenções. Depois de um tempo passou a ficar constantemente de prontidão diante da minha curiosidade, mesmo quando dormia. Como bom estrategista descobriu que a melhor defesa era o ataque, e, com toda boa vontade dos meus esforços incontinentes em ouvi-lo, acabou tornando-se cada vez mais delirante em suas confissões convenientes. Foi justamente por esse motivo - algo extremamente delicado e embaraçoso - que nossa relação foi mudando aos poucos sem que eu percebesse ao tipo de gravidade que isso levaria. E quando você dormia, eu apenas observava, a metade da sua mente se elevava aos céus e a outra metade aos mais baixos labirintos do inferno. E eu, olhando assim o seu rosto inocente e puro, jamais seria capaz de descobrir tudo o que cercava os seus pensamentos nessa hora. Você, naquele transe praticamente mortal, parecia mais fascinante ao meu olhar. Através dos seus poros eu sentia que tudo o que escondia escorria se diluindo pelo ar; para depois voltar e cair sobre nossas cabeças. Às vezes, quando medito sozinha imagino tudo o que aconteceu e sou tomada de um pavor imediato e permanente. Tento convencer a minha consciência de que nada foi construído sobre o alicerce do cinismo. Em vão!
    Eu sabia que a sua aura se tornava fascinante e esplendida quando você queria e eu poderia mergulhar nela para nunca mais voltar, porque me sentiria seguramente a caminho do paraíso. Ao admirar o seu corpo descansando na cama do hotel, eu via através dos seus contornos que estava bem desenvolvido, musculoso e flexível, parecendo possuir um peso que não se podia medir a olho nu, no entanto, tinha um ponto de equilíbrio mais que humano, poder-se-ia dizer como de um pêndulo marcando o infinito. A sua respiração parecia tão profunda quanto o seu sono, como se estivesse acima ou abaixo da criação humana, da vivência animal ou da expansão vegetal: na verdade você era alguém afundando no mundo mineral onde a vida estava apenas a um degrau da morte. O que eu me perguntava era como conseguia dominar tão bem essa arte de ser impostor até mesmo nos sonhos, sem que em nenhum momento se traísse balbuciando inconfidências. Eu achava que estava dominando alguma técnica de controle desses sonhos, pois, quando eles vinham, automaticamente, você se desligava para o nada. Se qualquer pessoa tivesse o dom de abrir o seu crânio durante o sono, veria que ali residia “o nada”. Os seus segredos mais perturbadores nunca eram armazenados por muito tempo; tudo lá dentro parecia morto, humanamente morto e envolvendo o seu mundo ao redor de todos em loucura. Nesse momento, poderia viver eternamente com um universo criando falsas ondas de paixão e ilusão; através da indução de brilhos lunares e planetas etéreos, dando diferentes nomes aos falsos sentimentos que já vagaram na sua órbita suicida. Dentro dessa tenebrosa morte no sono, a sua pior intenção ficava magicamente intacta, e depois se renovava através de seus pensamentos em vida. E nesse sono os seus olhos tremulavam sob as pálpebras, mostrando o seu único sinal aparente de vida quando já parecia próximo de baixar ao túmulo. Logo em seguida, abrindo os olhos, ficava muito vivo e desperto, levantava num sobressalto, como se a luz lhe causasse um choque elétrico. Imediatamente entrava em total atividade, reclamando sem parar que a luz o aborrecia. Na minha mais pura verdade, eu acho que qualquer luz o aborrecia. Então você andava nu de um lado para outro em busca do vazio. O que mais me admirava é que você se mantinha perfeitamente controlado enquanto todo o nosso passado desfilava à minha frente, detalhe por detalhe, ditada pelo fino capricho em ser ouvida por mim mesma. Diante de mim a imagem da liberdade em busca de um tempo que nunca conseguimos vencer. 
     Na luz da manhã que já clareava a janela do hotel as coisas corriam bem, enquanto a impressão foi que estava vendo tudo de outra dimensão; um lugar de onde pendia o espectral silêncio da insanidade de um mundo esgotado por tanta carnificina dos maníacos e lunáticos de plantão, incluindo você e eu. Enquanto lá fora se desenvolvia toda a atividade diária do mundo mundano, nós comemos e ronronamos como dois gatos no cio. E você comeu desesperadamente como um súcubo que sempre necessita de energia para sustentar o vício. Que noite feliz! Com toda nossa carne ficando à amostra, regada à saliva, esperma e sucubação infinita havia muita pele para arranhar e carne para enterrar os dentes; ou, até mesmo, o pau duro procurando o meu buraco uterino para se encaixar. Acima de nós existia apenas o sonho do mundo irreal - filtrando a luz do céu com cor de sangue na minha imaginação e tom de bálsamo do mar para acalmar as dores. Iluminados por cores e calor, nós nos comemos mais e mais à vontade até nos fartar, ainda que o amanhã chegasse e nos encobrisse outra vez com seus raios sinistros, nós nem percebemos o tempo que passou. O seu semblante parecia o de quem nada pensava ou desejava, exceto, partilhar o sexo diante das paredes da nossa célula de sobrevivência. No momento seguinte eu imaginaria novas teorias e conspirações, ou um único grão de verdade, caso, isso fosse necessário para desvendar todo mistério. Mas as verdades que encontrei, juntando os grãos, não eram mais as minhas verdades, elas serviam para a vida de outra pessoa, alguém que talvez um dia voltasse a viver com você ou apenas aparecesse para fazer algo prazeroso após um telefonema. Assim ficamos à beira de um precipício que ligava dois pontos de um caminho, você e eu, como já disse, mas o vão sempre foi largo demais e o precipício apenas uma ficção. Vivemos num entreato, onde de um lado ainda restou a certeza de sempre voltar ao ninho do amor em qualquer tempo ou lugar e, do outro, demônios batendo suas enormes asas apontando o caminho da superfície - sem que eu soubesse o grande vazio que conheceria depois. 


  

4 comentários:

  1. Este Episódio deixa bem claro caro amigo a afinidade entre duas pessoas, as lembranças que ficarão eternamente no subconciente. Passa um filme em nossas cabeças quando podemos ter um momento e reelembrar de coisas boas passadas. Lembranças estas que valeram a pena viver. Grande Abraço.

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  2. Adorei querido, em vários momentos senti até uma certa inveja da personagem, porque já não consigo me lembrar de como é amar alguém, é como sofremos só de imaginar a possibilidade da perda, de ficar deslumbrado só com a sua presença,achar tudo que sai da sua boca magnífico...
    Será que existe este amor descrito,neste conto, incondicional?
    Não sei mas dizer,diante de tantas frustações e decepções ficamos enfurecidos,meio insensíveis, mas confesso que gostaria muito fé sentir novamente este tipo de sentimento , se e que ja senti algum dia,será? NAO sei ...

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  3. Patricia Ramos Sodero1 de setembro de 2018 às 22:13

    Boa noite,Sr.Autor!Esse capítulo mostra bem o conflito que essa mulher carrega em seu subconsciente,entre seu amor do passado,que conhece desde a adolescência;estórias cósmicas que seu pai contava e tentava a envolver que de uma certa forma,dizendo que essa parte interferia em sua vida,e por final,o carinho que sente por Gustavo e não consegue transmitir por completo,por ter a perturbação que só a corroe.Enquanto ela não se libertar,não conseguirá tem progresso algum.Ela sabe o quanto pode ser feliz com Gustavo.Como sabe.O erro maior é dela,claro,por ficar com alguém ao seu lado,com outra na cabeça,junto com lembranças,atrasando a vida de ambas as partes.Vê-se bem que,ela sempre teve a família ao seu lado e quis caminhar para outras direções.Um capítulo que começa a desvendar mais sobre sua vida.Vamos ver o que será.
    Parabéns.Estou gostando bastante do conto.Até o próximo capítulo.Bjs...

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  4. Sim Sr. Autor, como é bom depois do prazer podermos admirar o parceiro, que nos proporcionou tAnto amor é cuidar e velar o seu sono,de exaustão, quem ser a essa balzaquiana? Beijos meu querido!

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